Teorias da conspiração que culpam o exército norte-americano pela pandemia, doações de equipamento médico com a bandeira da China e cidadãos chineses a serem repatriados ilustram uma campanha revisionista lançada por Pequim à escala global, alertam analistas.
"Trata-se da primeira ofensiva de propaganda verdadeiramente internacional [do regime chinês] e uma nova linha da frente na guerra global da informação", descreveu Louisa Lim, investigadora e professora na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, num artigo publicado na revista Foreign Policy.
Numa altura em que a pandemia da covid-19 reclama milhares de vidas e paralisa países inteiros, o regime chinês, que é acusado de ter escondido informação crucial durante as primeiras semanas após a doença ser detetada no centro do país, tem desviado a atenção sobre a origem do novo coronavírus, ao mesmo tempo que cultiva a imagem de benfeitor, apesar de indicações do oposto.
"Por cada máscara doada, a China vende um milhão", explicou à agência Lusa um diplomata europeu. Várias outras fontes revelaram que as alfândegas chinesas estão a bloquear a saída de máscaras FPP3, que têm o nível mais alto de proteção respiratória, e cruciais para os funcionários de saúde que tratam infetados pelo novo coronavírus.
No entanto, por todo o mundo, jornais e cadeias televisivas reproduzem imagens de aviões a transportar doações de equipamento médico ou especialistas chineses a desembarcarem em países estrangeiros para ajudarem no combate à epidemia, sempre acompanhados da bandeira da China.
As imagens são registadas pelos órgãos oficiais de Pequim, que nos últimos anos concluíram acordos para partilha de conteúdo com centenas de meios de comunicação por todo o mundo, ao mesmo tempo que as autoridades chinesas expulsam jornalistas estrangeiros do país num número inédito ou dificultam ao máximo o seu trabalho.
A agência noticiosa oficial Xinhua e a televisão estatal CGTN contam já com centenas de delegações além-fronteiras e têm agressivamente procurado parcerias no exterior visando publicar conteúdo aprovado pela Propaganda do Partido Comunista, sob o selo de órgãos de comunicação independentes.
Esta investida foi oficialmente lançada em 2009, após protestos pró-independência do Tibete e em defesa dos Direitos Humanos terem acompanhado a passagem da Tocha Olímpica, em várias cidades do mundo, nas vésperas dos Jogos Olímpicos em Pequim.
Numa era em que a Internet destruiu o modelo de negócio da imprensa tradicional, o regime chinês anunciou então um investimento equivalente a 5,8 mil milhões de euros, visando reforçar a presença global dos seus órgãos de comunicação.
"Uma das principais conclusões da atual campanha é que a tentativa da China de aumentar o poder da sua narrativa no exterior está finalmente a dar frutos", apontou Lim.
Logo após o início do surto, em janeiro passado, a comunidade cientifica chinesa foi consensual em apontar o comércio de animais exóticos, em particular morcegos ou pangolins, pela epidemia do novo coronavírus, à semelhança do que aconteceu em 2003, com a crise da pneumonia atípica.
A própria Assembleia Nacional Popular, o órgão máximo legislativo da China, proibiu, em fevereiro passado, o comércio de fauna silvestre e a eliminação do consumo de animais selvagens.
No entanto, à medida que Itália, Irão ou Coreia do Sul foram registando casos de infeção, a liderança chinesa foi "incrivelmente rápida e descarada" na forma como "virou a mesa ao contrário", apontou à Lusa Richard McGregor, investigador na unidade de investigação Lowy Institute, numa conversa por telefone.
Na semana passada, Zhao Lijian, porta-voz da diplomacia chinesa, afirmou mesmo na rede social Twitter, que está bloqueada na China, que os "Estados Unidos devem uma explicação" à China, sugerindo que "as forças armadas norte-americanas podem ter levado a epidemia para Wuhan".
Para apoiar as suas suspeitas, Zhao citou dois artigos da Global Research, um portal conhecido pelas suas teorias da conspiração.
"Eu não subestimaria que muitas pessoas na China acreditem nessa teoria", apontou Richard McGregor. "Durante muitas décadas foram indoutrinadas com histórias sobre estrangeiros sem escrúpulos, sobretudo americanos, o que torna essa narrativa muito eficaz", notou.