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REPORTAGEM: Covid-19: Voluntária oferece alimento a sem-abrigo no Porto

LUSA
28-03-2020 16:51h

Mariana Castro Moura entrega sozinha, pelas ruas do Porto, na zona da Boavista, doze refeições por dia a sem-abrigo, numa missão de voluntariado provocada pelos problemas criados pela declaração do estado de emergência para combater a covid-19.

A Lusa acompanhou a antiga colaboradora social que hoje prefere "trabalhar sozinha" e que com um carrinho de compras distribui sacas com sandes, fruta e água adquiridas num hipermercado e que resultam dos apoios que desde segunda-feira, data em que foi para a rua a primeira vez, conseguiu angariar.

À conversa durante o trajeto, a primeira paragem foi cerca de 400 metros acima do local de encontro, junto à Autoridade para as Condições do Trabalho, onde quase sem interromper o relato do que a levou a esta missão entregou a primeira saca solidária.

"Estas pessoas ficaram desesperadas assim que foi instalado o estado de emergência, vi-os a bater aos vidros dos carros a pedir comida porque não têm a quem decorrer. Principalmente ao domingo a situação tem vindo a piorar", relatou.

Despendendo "cerca de quatro horas por dia” no apoio, entre entregas e as compras que faz sempre para o dia seguinte, a voluntária, formada em Direito, já conhece todos os locais onde estão os sem-abrigo e para a semana promete aumentar o número de kits "para 15".

O facto de os "bebedouros da cidade terem sido desligados e terem perdido o acesso aos centros comerciais para encher as garrafas nas casas de banho aumentou-lhes os problemas", relatou Mariana.

No seu trajeto diário diz deparar-se com "alcoolizados, drogados, descompensados, violentos e até quem não queira nada" e sustenta-se na "fé" para manter o percurso.

Com luvas calçadas e dispensando uma máscara, faz render o tempo que o encerramento do seu centro de estética a "obrigou" a ter por força do estado de emergência. Caminha apressada. Sabe que tem gente à sua espera para comer.

O terceiro "kit" é entregue a quem começou por lhe pedir uma moeda e o quarto, já na Rotunda da Boavista, a um sem-abrigo "sempre alcoolizado" e que nem reagiu quando lhe colocou o saco ao lado do local onde, pretensamente, dormia.

O trajeto roda à direita para o Bom Sucesso onde estão os primeiros sem-abrigo com cães, para quem tem também duas latas de comida, com os donos a retraírem-se perante a presença do jornalista. Contudo, o guardar da distância faz com que a "normalidade" impere.

Mariana conhece os locais e as horas onde eles costumam estar e interroga-se quando um não comparece e conta à Lusa que não gosta de deixar comida a pessoas a dormir, porque os "sem-abrigo roubam-se uns aos outros".

Avançando para a rua Júlio Diniz, cruza-se com uma sem-abrigo de quem Mariana desconfia ter "problemas mentais, pois recusou, com maus modos, ser ajudada", e chega-se novamente à Rotunda da Boavista, a que dá a volta por completo antes de rumar ao jardim onde em silêncio homens de cara fechada passam o tempo sentados nos bancos, onde acaba a entrega os "kits".

A reserva de Mariana em falar com os sem-abrigo "para não lhes criar a opinião de que podem pedir mais do que recebem" quebrou quando se aproximou de Manuel, de 48 anos, e a quem já entregara uma saca com comida, minutos antes, "no Bom Sucesso", lembrou-lhe o sem-abrigo.

Há dois meses a viver na rua depois de ter "ficado no desemprego e sem poder pagar 350 euros pelo quarto que ocupava", Manuel, assim que percebeu estar perante, também, um jornalista, mostrou preocupações que vão para além da sua situação.

"O nosso Governo tem tanta preocupação com o coronavírus e deixa andar aqui o pessoal? Nós somos um potencial transmissor. Acho muito estranho haver tanta gente que apanhou [o vírus] e não ser nenhum sem-abrigo. Tenho a certeza absoluta de que há", enfatizou.

E prosseguiu: "se calha de haver, e eu acho que já há, um sem-abrigo infetado, e que ele não o saiba, é um rastilho para contaminar o resto da sociedade, porque nós andamos um pouco por todo o lado", alertou, preocupado também, "pelo facto de poder já estar infetado e não saber como ser ajudado".

Beneficiário do fundo de desemprego, Manuel procura trabalho e a conselho de Mariana, na próxima semana, vai contactar uma instituição de solidariedade social do Porto que dá formação profissional para tentar integrar um curso.

Finda a conversa a três, foi tempo de fazer o caminho inverso, Avenida da Boavista abaixo, com a voluntária a deixar a certeza de que vai “continuar a distribuição dos kits durante o tempo que demorar a crise".

Segundo informação hoje da Direção-Geral da Saúde a covid-19 já matou 100 pessoas em Portugal, havendo ainda 5.170 casos de infeções confirmadas.

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