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Covid-19: Apoio da China pode ajudar a preencher vazio geopolítico - analista

LUSA
24-03-2020 11:16h

O analista político Bernardo Pires de Lima considera que o apoio da China, sobretudo a países asiáticos, para combater a pandemia de covid-19 pode ajudar o país preencher a vazio relativamente a um centro geopolítico aceite por todos.

“A vulnerabilidade que atravessamos, de saúde pública, de declínio económico e de falta de um centro geopolítico assumido e aceite, tornam a proatividade estratégica chinesa numa ação de ocupação clara desses vazios”, afirmou à Lusa o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa.

“A ajuda a países asiáticos, europeus e africanos é uma grande campanha de ‘soft power’”, admitiu Pires de Lima, lembrando, no entanto, que esta linha política “tem um histórico”.

A China tem fornecido assistência humanitária, quer através da doação de bens médicos – como máscaras faciais –, quer de conhecimento científico, tanto à Ásia como à Europa, à América do Sul e à África.

Na semana passada, a China enviou um milhão de máscaras e luvas cirúrgicas para França, para ajudar a combater o coronavírus, e o líder chinês, Xi Jinping, prometeu ao primeiro-ministro espanhol “responder às necessidades urgentes da Espanha” e “partilhar experiências sobre prevenção, controlo e tratamento”.

A 11 de março, Pequim enviou uma equipa de médicos especialistas para ajudar a Itália a combater um dos mais graves surtos mundiais de coronavírus fora da China, tendo, uma semana depois, publicado no jornal oficial Diário do Povo que “a luta da China contra o coronavírus demonstra o papel da China como uma potência responsável”.

O artigo sublinha a rapidez com que a China mobilizou ajuda e como os países estão gratos.

“Existe um tipo de alívio chamado ‘Medidas da China’, um estilo chamado ‘Responsabilidade da China’, uma atitude chamada ‘Espírito chinês’ e um tipo de afetuosidade chamado ‘Ajuda chinesa’”, referia o jornal.

O analista Bernardo Pires de Lima lembra, no entanto, à Lusa que “a crescente importância estratégica de algumas relações de países europeus com a China é anterior à crise” atual.

Essa estratégia tem sido “paulatinamente trabalhada nos domínios financeiro, logístico, turístico e comercial”, avançou o analista de relações internacionais.

A intenção da China tem sido, explicou, cumprir “a vontade política de Pequim de deixar de ser apenas uma potência regional, para ser uma grande potência global”.

Exemplo disso, referiu, é o caso da iniciativa chinesa ‘uma faixa, uma rota' (BRI, na sigla em inglês), um megaprojeto adotado pela China em 2013 para criar infraestruturas e investimentos em quase 70 países e organizações da Ásia, Europa e África).

“O BRI é o corolário desta visão, atravessando Ásia, África e Europa, ligando estreitos, oceanos e redes de comércio e influência política chinesa”, sustentou Pires de Lima.

Apesar de a atual situação e ajuda dada pela China constituir, na opinião deste analista, uma oportunidade, Pires de Lima admitiu não ter a certeza se o país terá “uma evidente vantagem a toda a linha”.

Isto porque, em primeiro lugar, não se sabe qual será o impacto da crise nas eleições norte-americanas.

“Caso [o Presidente norte-americano, Donald Trump, perca, tudo indica que Joe Biden (vamos assumir que é ele) tente rapidamente reverter o desastroso legado transatlântico de Trump”, defendeu o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais.

Por outro lado, “a economia chinesa também terá impactos muito negativos com esta crise e serão eles a ditar o alcance da sua ação externa, mais ou menos ambiciosa, mais ou menos influente”.

O cenário levanta, segundo Bernardo Pires de Lima, “uma pressão brutal à gestão política europeia”.

“Depois de 70 anos profundamente conectada politicamente com Washington, garantia aliás de coesão dentro da UE e dos sucessivos alargamentos, alguns Estados-membros tentam hoje equilibrar essa predominância com o papel da China”, descreveu.

Tudo isto, “não sendo um jogo de soma nula, é suficientemente disruptivo na história da integração europeia para percebermos com clareza para onde caminhará”, reconheceu.

No sábado, a estação inglesa BBC considerava que o novo coronavírus se tinha tornado no último campo de batalha entre os Estados Unidos e a China.

Acusações mais ou menos subtis, como o facto de o Presidente Donald Trump classificar o coronavírus como “o vírus chinês” ou a insinuação do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês de que teria sido "o Exército dos EUA que levou a epidemia para Wuhan", cidade chinesa onde foi inicialmente detetada a pandemia, azedaram mais as relações entre os dois países.

Para os observadores de políticas chinesas ouvidos pela BBC, “este jogo geopolítico de atribuição de culpas é uma corrida para um abismo”.

Os dois países “querem ganhar benefícios, em vez de unir forças para derrotar um inimigo comum que não reconhece fronteiras políticas ou geográficas”, escreveu recentemente Yonden Lhatoo, editor-chefe do jornal de Hong Kong SCMP.

“Uma intensa competição estratégica entre os dois aumentará a pressão sobre outros países para escolher entre os Estados Unidos e a China”, alertou.

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