O antropólogo Paulo Granjo considerou que a independência de Moçambique trouxe a perseguição dos curandeiros que tiveram de se tornar invisíveis para sobreviver, antes do seu reconhecimento por Samora Machel, mas ainda hoje são vistos como menores pela medicina convencional.
“Aquela prática que era, de alguma forma, temida durante o colonialismo, mas deixada em grande medida à margem e para os colonizados, tornou-se uma coisa perseguida”, disse à Lusa Paulo Granjo, investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Essa perseguição, “muito violenta”, incluiu “a queima da parafernália de curandeiros” e “houve curandeiros que foram para campos de reeducação por serem considerados improdutivos, porque a sua atividade não era reconhecida como uma profissão”.
Isto porque, conforme explicou, “uma das linhas importantes e ideológicas do pós-independência, do regime que era modernista, modernizador, etc., era o combate ao que chamavam de obscurantismo, que era tudo aquilo que não fosse cientifico”.
“Alguns não sobreviveram e outros sobreviveram clandestinamente, tendo uma atividade qualquer durante o dia – agrícola, se fosse no campo, ou outra, se fosse na cidade, e atendendo só pessoas de confiança ou apontadas por outras de confiança, e durante a noite”, contou.
Foi um período difícil para estes “médicos tradicionais”, que sempre tiveram uma forte presença na vida de muitos moçambicanos, desde o seu nascimento até à morte, em virtude de a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), um partido político de base marxista, vencedor da guerra civil (1977/92) considerar esta prática obscura.
A associação que representa estes curandeiros – Associação de Médicos Tradicionais de Moçambique (AMETRAMO) – foi criada em 1992 e Paulo Granjo conheceu um dos curandeiros que fizeram parte de uma delegação que apelaram a Samora Machel para terminar com as perseguições.
Isso aconteceu numa altura em que Samora Machel estava de férias e a delegação foi lá “queixar-se das perseguições e dizer que em muito sítio não chegavam médicos, nem sequer enfermeiros, que eram necessários e argumentaram de todas as formas que puderam”.
“A questão da associação, que funciona informalmente, como um género de ordem, com algumas atribuições semelhantes, surgiu e foi autorizada em resultado dessas longas conversas com o Presidente Samora Machel, como uma forma de autorregulação e a possibilidade de pedir responsabilidades a alguém, caso alguma coisa de mal se passasse”, tornando-se fundamental para “o reatar da atividade dos curandeiros às claras”.
No seguimento destas conversas, foram definidas as práticas que os curandeiros podiam e não podiam fazer e passada uma ordem por Samora Machel a autorizar a criação dessa associação.
“Quando chegaram a Maputo e se dirigiram ao ministro da Saúde com o documento a autorizar isso foram presos, porque o ministro da Saúde não acreditou que o Presidente tivesse escrito aquilo. Foram presos por falsificação”, o que era uma situação de traição, por se tratar de falsificar a assinatura e ordem do Presidente.
“Machel voltou de férias e disse que tinha escrito e que era para fazer”, adiantou o antropólogo, concluindo que foi desta forma que os curandeiros sobreviveram “à luz do dia e sem problemas”.
Mais tarde, referiu, foi criada no próprio Ministério da Saúde uma divisão sobre a medicina tradicional que durante muito tempo se focou muito mais na questão das plantas medicinais e curativas.
Ainda assim, sublinhou: “esta é uma relação sempre com tensões e sobretudo de cima para baixo, do lado da medicina, tal como a conhecemos, para os médicos tradicionais/curandeiros e mesmo da parte dos burocratas e dos dirigentes ministeriais”.
“É sempre um olhar de cima para baixo, não é uma conversa ao mesmo nível; continua, nesse aspeto, a haver muitas questões para resolver”, concluiu.
Paulo Granjo, que também é professor visitante do Departamento de Arqueologia e Antropologia da Universidade Eduardo Mondlane, em Moçambique, conhece o mundo dos curandeiros moçambicanos, que estudou, tendo ele próprio se submetido a um tratamento que culminou com o investigador a ter uma ovelha degolada às costas, episódio que relata no livro “O cheiro do sangue de ovelha”, editado pela Tinta da China.