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Covid-19: Angolanos pobres num dilema entre contrair o vírus e a realidade da fome

LUSA
30-03-2020 20:02h

O Observatório do Género, organização não-governamental (ONG) angolana, considerou importante que se contextualize o combate à pandemia da covid-19, porque "para muitas pessoas, o vírus é uma possibilidade, mas a fome é uma realidade".

A posição foi hoje manifestada pela diretora executiva do Observatório do Género, Delma Monteiro, numa análise ao estado de emergência decretado em Angola na semana passada para o combate à pandemia provocada pelo novo coronavírus.

Angola registou já os dois primeiros óbitos de sete casos positivos da covid-19, e tem em curso um conjunto de medidas preventivas de combate à pandemia, nomeadamente o isolamento social por 15 dias prorrogáveis, ao abrigo de um decreto presidencial que declarou o estado de emergência.

"É importante sabermos contextualizar esse combate, sabermos contextualizar de facto o estado de emergência, porque acredito que o vírus para muitas pessoas - e sem querer minimizar o risco do vírus - é uma possibilidade, mas ficar em casa parado é uma realidade: a fome", referiu Delma Monteiro em declarações à agência Lusa.

A ativista realçou que os angolanos têm colocado na balança o "enfrentar a realidade que é a fome ou arriscar a possibilidade de uma contaminação".

Segundo Delma Monteiro, é importante ter-se todos esses elementos "para se poder fazer um combate mais contextualizado e realístico".

A diretora executiva do Observatório do Género salientou que, quando foi decretado o estado de emergência e se tornou obrigatória a questão do isolamento social, a ONG ficou preocupada com a situação das ‘zungueiras' (vendedoras ambulantes) "e de todas as famílias pobres que não têm como, por exemplo, fazer um ‘stock’ significativo de alimentos em casa".

"Entendemos que as pessoas chegariam a uma altura em que teriam que decidir: ou vamos ficar em casa e morrer de fome ou vamos nos arriscar e nos expor ao vírus", afirmou.

Delma Monteiro disse que outra preocupação está relacionada também com as medidas de higienização propaladas pelas autoridades sanitárias, nomeadamente a orientação para a lavagem das mãos com água e sabão.

De acordo com a ativista, apesar da publicidade da distribuição de água por cisternas, que foi passada nos meios de comunicação social, a ONG já teve "a oportunidade de confirmar que, afinal, é mais uma publicidade".

"Eu particularmente liguei no sábado, voltei a ligar ontem domingo, voltei a ligar hoje e a resposta é que ‘Viana km9 A' não está cadastrada como área que necessita de água. Eu moro na zona periférica da cidade, tenho orgulho de dizer isso, e não corre água aqui, nós vivemos de cisternas", exemplificou.

As dificuldades de abastecimento de água no país, considerou Delma Monteiro, são uma realidade e as cisternas, desde há algum tempo que estão a ser combatidas por ser ilegal a captação clandestina de água. Contudo, nesta altura, o Governo não tem capacidade de atender à população.

"Nós estamos sem água e maior parte das famílias pobres deste país têm de enfrentar diariamente esse dilema: vou procurar água ou fico em casa a me esconder do vírus? Vou procurar comida ou fico em casa a me esconder do vírus?", salientou.

Delma Monteiro considerou também importante desconstruir o apelo à utilização do álcool em gel e do álcool 70%, "porque, de facto, é um luxo que grande parte das famílias não têm".

"Conversei com ‘zungueiras’ que nunca ouviram falar do álcool em gel na vida delas, é uma novidade", frisou, acrescentando que a água e sabão são mais eficientes para o combate ao novo coronavírus.

A ativista notou que algumas das vendedoras ambulantes estão a ter consciência do risco e estão a reinventar a sua atividade.

"Ouvi histórias de ‘zungueiras’ que passaram a distribuir o seu contacto às famílias que mais regularmente são seus clientes, a pedir para ligarem se precisarem de alguma coisa", indicou.

O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infetou mais de 727 mil pessoas em todo o mundo, das quais morreram perto de 35 mil.

Dos casos de infeção, pelo menos 142.300 são considerados curados.

Depois de surgir na China, em dezembro, o surto espalhou-se por todo o mundo, o que levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar uma situação de pandemia.

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