As trocas de acusações entre países do norte e sul da Europa sobre a resposta económica à crise provocada pela covid-19 espelham “questões mal resolvidas” e “ressentimentos” da anterior crise do euro, considera uma analista especializada em assuntos europeus.
Em declarações à Lusa, Sophie Pornschlegel, analista política do European Policy Centre (EPC), considera também que, “sendo normal haver pontos de discórdia” entre os Estados-membros nas discussões entre si, “era positivo que esses conflitos não fossem para a praça pública”, como aconteceu na semana passada com as críticas do primeiro-ministro português, António Costa, ao ministro das Finanças holandês.
Recordando as fortes tensões durante a anterior crise da dívida soberana, designadamente o “ressentimento” latente entre Alemanha e Grécia, mas também os comentários do holandês Jeroen Dijsselbloem sobre os países do sul da Europa, esta analista de um dos mais prestigiados ‘think tanks’ (grupos de reflexão) sedeados em Bruxelas dedicados a assuntos europeus defende que “dos líderes é de esperar uma maior reserva” em público, pois as divergências abertas não contribuem para os compromissos.
Para Sophie Pornschlegel, depois da ‘crise do euro’ provocada pela crise financeira de 2008, e para ‘sarar as feridas’ expostas, “deveria ter havido um diálogo político muito mais forte e abrangente, que tivesse incluído parlamentos nacionais e a sociedade civil”, para a Europa compreender e aceitar melhor as diferenças, até culturais, que existem entre os Estados-membros.
A analista sénior do EPC lamentou que esta questão seja desvalorizada pelos decisores políticos, razão pela qual volta a assistir-se a trocas de acusações, desunião e falta de solidariedade entre países da União numa situação de crise.
“E sim – concorda -, o risco de agravamento dessas divisões está definitivamente aí”, perante a resposta europeia aos impactos, que se preveem brutais, da pandemia de covid-19 nas economias europeias.
Além das recriminações entre Estados-membros, aponta, volta também “a típica narrativa de nacionalizar os sucessos e europeizar os fracassos”, responsabilizando designadamente a Comissão Europeia por tudo o que corre mal.
No entanto, e embora admita que “faltou uma resposta coordenada” de Bruxelas no início, esta especialista em assuntos europeus considera que “é errado usar a Comissão Europeia como bode expiatório”, até porque, notou, entretanto o executivo comunitário já tomou muitas medidas de relevo (assim como o Banco Central Europeu, igualmente depois de ‘passos em falso’), e se mais não faz é porque não tem competências para tal.
Sophie Pornschlegel aponta mais o dedo às capitais e à sua incapacidade de encontrar compromissos, tal como aconteceu no último Conselho Europeu, da semana passada, que terminou apenas com um convite ao Eurogrupo para trabalhar em propostas no prazo de duas semanas, o que para esta analista política “não é uma solução”.
Concretamente sobre as opções em cima da mesa, considera que dificilmente a emissão de títulos de dívida europeus, os chamados ‘eurobonds’ ou ‘coronabonds’, alcançará a unanimidade necessária, designadamente porque a Holanda nunca aceitará e na Alemanha é também uma questão fraturante a nível interno.
Nestes casos, Pornschlegel nota que os governos agem muito em função das suas opiniões públicas, e a verdade, nota, é que nos países do norte há um grande receio de emitir dívida em conjunto com os países do sul.
Considerando que os desentendimentos atuais também resultam de não se ter avançado suficientemente na União Económica e Monetária e em reformas profundas da zona euro – “uma opção política que foi um erro” -, a especialista do EPC defende que um compromisso a que os 27 devem chegar é ‘prolongar’ o orçamento comunitário de 2020 para 2021.
Face à situação atual, sustenta, “não parece ser viável um acordo” sobre o quadro financeiro plurianual 2021-2027 até final do corrente ano.
A última tentativa de chegar a um entendimento fracassou numa cimeira em fevereiro – ainda antes de a Europa se debater com os efeitos da pandemia de covid-19 -, na qual ficaram também evidentes as divisões no seio da UE, com os países defensores da coesão de um lado e os chamados ‘frugais’ do outro, o que volta agora a repetir-se num cenário ainda mais sensível, de crise.
Na passada quinta-feira, após uma reunião por videoconferência do Conselho Europeu, o primeiro-ministro português foi questionado sobre declarações do ministro das Finanças holandês que, segundo vários órgãos de imprensa europeia, sugeriu que a Comissão Europeia investe países como Espanha que alegam não ter margem orçamental para lidar com a crise provocada pela pandemia da covid-19, apesar de a zona euro estar a crescer.
"Esse discurso é repugnante no quadro de uma União Europeia. E a expressão é mesmo essa. Repugnante", reagiu António Costa, acrescentando que as palavras do ministro holandês foram de "uma absoluta inconsciência" e de uma "mesquinhez recorrente", que "mina completamente aquilo que é o espírito da União Europeia e que é uma ameaça ao futuro da União Europeia".
A Lusa também contactou a Comissão Europeia, que, no entanto, escusou-se a "comentar comentários”.