SAÚDE QUE SE VÊ

A revolução silenciosa da saúde há 50 anos é hoje evocada em Lisboa

LUSA
30-10-2025 08:00h

Para internar um doente por motivos psiquiátricos há 50 anos em zonas como Vila Real era necessário percorrer mais de 100 quilómetros, até ao Porto, uma distância que impedia o apoio familiar e levava a internamentos de décadas.

Esta foi a realidade que o médico António Leuchner encontrou quando seguiu para o Norte do país, integrado num grupo de 14 jovens licenciados em Medicina, afetos ao Serviço Médico na Periferia (SMP), criado em junho de 1975 e que estará hoje em destaque numa conferência, em Lisboa.

“Na área da saúde mental, isso é muito óbvio: se a pessoa é deslocada do seu meio e vai para cento e poucos quilómetros de distância, a família começa por ir visitar uma vez por mês, depois vai uma vez ou duas por ano e em alguns casos, depois deixa de ir. E isto dava que alguns doentes ficavam internados décadas!”, recordou.

Estes casos aconteciam, sobretudo, com pacientes com doenças mais graves. “As pessoas perdiam as suas raízes, a sua ligação, as famílias não tinham condições de lhes dar o apoio necessário”, contou António Leuchner.

“Era uma realidade muito deficitária”, afirmou o médico, em declarações em agência Lusa, a propósito da conferência no ISCTE que assinala a criação do SMP, considerado o embrião do Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Os médicos destacados para esta missão realizavam habitualmente as consultas nas Casas do Povo e de Pescadores (no litoral) e prestavam serviço de urgência no hospital local.

Vila Pouca de Aguiar, Murça, Alijó, Santa Marta de Penaguião, Sabrosa, Ribeira de Pena eram concelhos percorridos rotativamente pelo grupo de António Leuchner, que viria a especializar-se em psiquiatria.

O médico, que ainda exerce, pro bono, uma vez por semana, é um dos organizadores da conferência promovida pela Fundação para a Saúde - SNS, da qual espera ver sair contributos para o futuro, com base numa experiência que considera enriquecedora.

“O número de médicos que havia nos distritos do interior era muito reduzido, o que levou a esta medida de tentar distribuir um pouco por todo o país um número significativo de médicos. Naquela altura, no meu ano, éramos 600”, a nível nacional, lembrou, ao situar a data em que cumpriu o SMP (1976-77).

De acordo com o médico, a experiência valeu pelo todo, pela oportunidade de concretizar o direito à proteção na saúde, que viria a ser consagrado na Constituição da República: “Havia muitas lacunas. Esse direito estava muito em falta. O número de pessoas que podiam garantir esse cuidado era muito reduzido”.

No distrito de Vila Real, só havia um psiquiatra, exemplificou.

Durante a conferência “50 Anos do Serviço Médico na Periferia: Uma revolução silenciosa que transformou a saúde em Portugal”, estão previstos testemunhos de outros médicos e contributos de académicos.

Para o psiquiatra, o legado fundamental do SMP foi ter dado oportunidade às populações mais periféricas de “verem um médico”, de saberem o que é fazer a avaliação da tensão arterial regularmente, a par de outras rotinas como a realização de análises e exames.

“Foi mais uma perda do que um ganho acabar com o Serviço Médico na Periferia”, defendeu o clínico que integra a direção da Fundação para a Saúde.

De acordo com o psiquiatra, o serviço deveria ter continuado, noutros termos. “Uma das coisas que se perdeu foi a possibilidade de fazer a expansão do conceito de descentralização da prestação de cuidados de saúde”, justificou.

“Valia a pena olhar para estas coisas e penso que a sessão [de hoje] vai despertar um pouquinho essa consciência da necessidade de refletir sobre o assunto e de que maneira é que poderia recriar-se a experiência, fazendo um ´upgrade´. Não apenas médicos para aqui e acolá, mas equipas de saúde irem globalmente fazer esse tipo de intervenções e de conhecimento da realidade”, advogou.

O SMP vigorou entre 1975 e 1982.

A conferência conta com a participação da reitora do ISCTE e ex-ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, da médica e ex-ministra da Saúde Ana Jorge, da historiadora Raquel Varela, entre outras personalidades que assumiram funções governativas nesta área como Maria de Belém Roseira e António Correia de Campos.

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