A Associação Portuguesa de Bioética defendeu hoje uma alteração à lei que permita a colheita de órgãos ‘post-mortem’ em paragem circulatória controlada, estimando que esta evolução possa salvar a vida a centenas de pessoas em lista de espera.
Num parecer enviado a todos os deputados da comissão parlamentar de Saúde para apreciação, a que a Lusa teve acesso, a associação reconhece que Portugal tem um sistema de transplantação de órgãos “de grande qualidade” – no ano passado era o 3º a nível mundial no número de dadores falecidos -, mas lembra as “necessidades crescentes” na utilização de órgãos e o aumento das listas de espera.
“No nosso país [as pessoas em lista de espera] ultrapassam os dois milhares e meio”, refere o documento, que considera essencial criar todas as condições para “mitigar a degradação da qualidade de vida dos doentes e o aumento de risco de fatalidade”.
Em declarações à Lusa, o presidente da Associação Portuguesa de Bioética (APB), Rui Nunes, explicou que se propõe que os critérios de transplante sejam extensíveis a casos de “doentes que estão em cuidados intensivos, que ainda não estão mortos, mas vão estar a muito curto prazo”.
“Aplicando estes Critérios de Maastricht, que não estão na lei portuguesa, mas que nós propomos que venham estar, estes doentes podem, no fundo, ser preparados para esse facto, sem alterar minimamente os pressupostos éticos, nem o envolvimento da família”, explicou o especialista.
Rui Nunes lembra que está é “uma prática que já se faz na maior parte dos países civilizados” e considera que Portugal ainda não deu esse passo “provavelmente por esquecimento ou por inércia”.
“Estamos a falar de centenas ou milhares de vidas humanas. Não é um caso pontual. Neste momento, estima-se que haja entre 2.500 a 3.000 doentes à espera”, lembra Rui Nunes, acrescentando: ”muitos destes doentes podiam rapidamente ser tratados”.
“Temos a tecnologia, temos os recursos humanos, temos o equipamento sofisticado - nomeadamente a ECMO - em muitos hospitais portugueses. Temos tudo: hospitais, tecnologia, profissionais. Só falta alterar a lei”, sublinhou.
A legislação em vigor permite a colheita de órgãos de dadores vivos, no caso dos órgãos duplos como o rim, e de fragmentos de fígado, na maioria dos casos destinada a crianças.
O parecer explica que “a dação em vida será sempre limitada” e recorda que a colheita de órgãos ‘post-mortem,’ (em dador falecido) é o “recurso major” de obtenção de órgãos em todo o mundo, “capaz de responder eficazmente à necessidade dos doentes com falência terminal de um órgão”.
Explica que a doação ‘post-mortem’, para colheita de órgãos para transplantação, pode ser efetuada quando a morte é certificada em consequência de uma lesão catastrófica irreversível do sistema nervoso central (morte cerebral), ou, após certificação da morte em consequência de paragem cardíaca irreversível (assistolia) e, consequentemente, com ausência de circulação em todos os órgãos e tecidos (morte de causa circulatória).
Na doação de órgãos ‘post-mortem’ em que o dador se encontra em morte cerebral, lembra igualmente que Portugal é um dos líderes mundiais. Contudo, a APB alerta que o número de dadores nestas circunstâncias “tende a diminuir”, tanto devido ao desenvolvimento da medicina intensiva como pelo facto de estarem a reduzir os acidentes (de viação e outros).
No parecer enviado à comissão parlamentar de Saúde, a APB diz que uma alternativa seria o alargamento da doação de órgãos, e consequente colheita em dadores em morte circulatória, "a todas as classes dos Critérios de Maastricht”.
Em Portugal, apenas se pode proceder à colheita de órgãos (rim, fígado, pulmão, coração, pâncreas, etc.) em dadores em que ocorre morte de causa circulatória “de uma forma não controlada pela equipa médica”, como, por exemplo, após uma reanimação cardiopulmonar sem êxito.
A APB diz que em toda a Europa se conseguiu aumentar o número de dadores recorrendo à colheita de órgãos em morte circulatória “de uma forma controlada”, o que implica uma alteração legislativa em Portugal.