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Quando se junta privilégio e vergonha cria-se oportunidade para ressentimento - académica

LUSA
26-01-2024 14:09h

A especialista em psicologia política Tereza Capelos considera que quando se junta privilégio e vergonha na política contemporânea, está a criar-se “uma oportunidade fantástica” para um tipo de ressentimento que alimenta políticas de rancor.

A docente da Universidade de Southampton, no Reino Unido, tem-se dedicado a compreender as políticas de rancor, as emoções na política e como mecanismos de um certo ressentimento podem levar a orientações políticas radicais, reacionárias e extremistas, analisando manifestos de pessoas que tomaram ações violentas, entrevistas de cidadãos ou interações digitais dos chamados ‘incels’ (celibatários involuntários).

Em conversa com a agência Lusa depois de ter participado no UNPOP, colóquio internacional em Coimbra onde se cruza populismos e emoções, Tereza Capelos faz questão de salientar a importância de distinguir aquilo que é entendido como ressentimento – uma resposta natural de uma pessoa a uma injustiça – do tipo de ressentimento que explora, a que lhe dá o nome de ‘ressentiment’, conceito criado pelo filósofo Nietzsche.

“Ressentimento não é uma ação, mas é orientado pela ação e a pessoa sente que pode fazer alguma coisa para mudar. Já o ‘ressentiment’ explica um mecanismo emocional complexo e é uma condição crónica experienciada por um longo período de tempo”, aclara.

Para explicar esse conceito, Tereza Capelos socorre-se de uma fábula da Grécia Antiga (“A raposa e as uvas”), em que se fala de uma raposa que há muito deseja comer uvas, aguenta a dor de não as conseguir apanhar e, depois de fracassar por várias vezes, vai-se embora referindo que afinal não queria as uvas e que estas até eram amargas.

“Este processo longo faz duas coisas: a pessoa mudar o valor de quem é, de uma vítima ineficaz que não consegue o que quer para uma vítima que acha que o que lhe estão a fazer é moralmente uma injustiça e depois o valor do que queria, seja as uvas, o trabalho, a casa ou a viagem, é mudado para não ter valor nenhum. Não é só a mudança do valor dessa coisa, mas essa coisa ficar amarga”, salienta.

O que Tereza Capelos tem procurado argumentar é que aquilo a que muitos académicos e especialistas classificam como sendo raiva na resposta de determinados indivíduos que se sentem marginalizados ou postos de lado, é, na verdade, esse ‘ressentiment’, em que há vergonha, raiva ineficaz e inveja.

Com base nessas emoções, essas pessoas começam a desvalorizar determinadas coisas, como a democracia, o sistema político, olhando para outros como “indignos, inúteis” e que não têm qualquer valor – algo que ficou muito claro na pandemia, na forma como alguns cidadãos desvalorizaram qualquer conhecimento científico ou declarações de especialistas, nota.

Nesse tal mecanismo complexo, as pessoas poderão assumir um sentido muito forte de injustiça, negação, projeção e divisão das coisas entre “mau e bom”.

“O ‘ressentiment’ tem uma função: permite existires num espaço muito doloroso sem lidar com a dor. Tem uma função psicológica para o indivíduo. Ele surge quando a pessoa está esgotada e escolhe o caminho de menor resistência, em que se desvia do problema e permite à pessoa adaptar-se”, apontou.

Nesse processo, a pessoa “cria uma realidade falsa, em que se considera boa e todos os outros maus e encontra em bodes expiatórios uma forma de libertar a raiva”, explica.

“Depois, junta-se a outras pessoas que também estão ressentidas e até pode manifestar-se na capital, partir coisas, marchar com tochas e pôr fogo a coisas porque tem um grupo de apoio. Mas resolve o problema? Não. Mas mantém a pessoa ocupada? Sim”, vinca.

Este tipo de mecanismo não está vinculado a ideologias ou a campos políticos, como a esquerda ou a direita, mas Tereza Capelos nota que há ideologias que permitem aos cidadãos “gerirem as suas frustrações” de um modo positivo e que são mais “abertas a experiências e à incerteza” e algumas ideologias que “encorajam as pessoas a ver o futuro como uma ameaça”.

“As ideologias que estão nesse espaço da ameaça de tudo o que é incerto puxam as pessoas para trás, porque o passado é um espaço seguro, especialmente se for reimaginado e recriado. Mas o tempo nunca anda para trás, e então as pessoas acabam por tropeçar”, nota.

Num mundo contemporâneo, onde a ideia de privilégio em torno de políticas identitárias ganhou outra dimensão, Tereza Capelos alerta para os riscos de se associar o privilégio à vergonha, acreditando que, nesse contexto, criam-se “oportunidades fantásticas” para o ‘resentiment’.

A investigadora recorda como o privilégio, especialmente no cristianismo, esteve sempre associado a uma ideia de gratidão, cuja ligação se perdeu com o tempo.

“Nós não exercitamos a gratidão porque desassociamos o privilégio da gratidão e tudo o que falamos hoje é da parte negativa do privilégio”, constata.

Com a ausência da gratidão e uma perspetiva apenas negativa do privilégio, quem efetivamente tem privilégio não o reconhece e ainda quer “tirar o dos outros”, aclara.

A partir dessa base, surge a vergonha do seu privilégio ou a inveja em relação ao privilégio dos outros, emoções normalmente “muito dolorosas”, refere.

Apesar de notar a desassociação entre gratidão e privilégio, para Tereza Capelos, “a resposta é não ser grato”.

“A resposta é criar condições para que as pessoas possam ter algo com que se sintam gratas e, ao mesmo tempo, lembrá-las das coisas boas que são providenciadas ou as que vêm aí e ficarem gratas com as oportunidades do futuro. A gratidão não precisa de ser algo que está lá, mas uma porta aberta”, nota.

Nesse sentido, falando de extremismos, reacionarismo e outras formas de política de rancor, a investigadora considera que a resposta a esses problemas terá de ser sempre “política”, através do combate às desigualdades.

“Os políticos têm responsabilidade de criar políticas que efetivamente dão resposta aos problemas das pessoas, para que elas não tenham de ficar três anos em frustração e, eventualmente, esgotar a força do seu ego e escorregar para o ‘ressentiment’. Há muita riqueza na sociedade que permite lidar com o problema”, defende.

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