Cerca de 600 mil atendimentos na urgência dos hospitais públicos no primeiro trimestre do ano foram considerados pouco ou nada urgentes, representando quase 40% do total.
Os números das urgências por triagem de Manchester, que indica o grau de prioridade clínica, mostram que quase 600 mil dos 1,6 milhões de atendimentos receberam pulseira verde, azul ou branca, sendo considerados pouco ou não urgentes, de acordo com dados disponíveis no portal da Transparência do SNS analisados pela agência Lusa.
Estes números estão em linha com os dados globais do ano passado, que mostravam que 2,2 milhões de atendimentos tinham sido considerados pouco ou nada urgentes num total, em 2018, de mais de seis milhões de atendimentos nas urgências hospitalares.
A atribuição do verde e do azul como prioridade clínica significa que os utentes poderiam ser encaminhados para outros serviços de saúde, como os cuidados primários. A pulseira branca significa casos de doentes recebidos por razões administrativas ou casos clínicos específicos referenciados por um médico, mas sem situação aguda.
As cores da triagem de Manchester são vermelho (emergente), laranja (muito urgente), amarelo (urgente), verde (pouco urgente) e azul (não urgente).
Nos primeiros três meses deste ano, mais de 530 mil atendimentos nas urgências receberam pulseira verde e quase 20 mil receberam pulseira azul, enquanto mais de 41 mil tiveram pulseira branca atribuída.
Os hospitais do SNS registaram ainda quase 160 mil casos muitos urgentes, com pulseira laranja, e mais de 5.600 considerados emergentes, com pulseira vermelha.
As pulseiras amarelas são as mais comuns, com mais de 670 mil casos atendidos entre janeiro e final de março deste ano, ainda assim menos do que o somatório dos casos de pulseira azul, verde e branca.
A triagem de Manchester define tempos aceitáveis para a observação médica consoante as cores da prioridade. Nos casos vermelhos, a observação deve ser imediata e nos laranja o atendimento deve ser feito em 10 minutos. As pulseiras amarelas podem aguardar uma hora pela observação médica, enquanto verdes e azuis podem esperar duas a quatro horas, respetivamente, ou serem encaminhados para outros serviços de saúde.
O perito da Organização Mundial da Saúde Nelson Olim defende que Portugal devia ter serviços de urgência descentralizados e fora dos hospitais para os casos menos prioritários, além de criar centros de trauma nalgumas regiões do país.
Em entrevista à agência Lusa, o cirurgião português considera que “o hospital é um recurso demasiado caro e especializado para ser quase desperdiçado em urgências ambulatórias”, com casos menos graves ou prioritários, que deviam estar mais próximos do cidadão.
“Os hospitais, quando fazem uma triagem na urgência, são obrigados a ver o doente independentemente do nível de prioridade. E o hospital tem de despender recursos para isso. Ainda ninguém quis de facto implementar uma urgência descentralizada, que permita ao cidadão que tenha um problema não emergente ou grave ter acesso a um médico sem ser no hospital”, afirma.
A sobrecarga nas urgências acontece, no entender do especialista em emergência médica, muito porque “não há um acesso fácil ao conselho médico”.
“Tem de haver uma reestruturação profunda das urgências para que apenas os doentes urgentes ou emergentes tenham acesso e sejam observados por profissionais que tenham uma capacidade especifica”, defende.
Essas “urgências ambulatórias”, para casos menos graves ou prioritários, poderiam estar ligadas aos centros de saúde, com acesso a alguns exames complementares de diagnóstico e terapêutica.
“O que não faz sentido no modelo português neste momento é manter a urgência ambulatória dentro do hospital. O hospital é um recurso demasiado caro e especializado. As urgências ambulatórias deviam estar mais próximas do cidadão, descentralizadas e de acesso fácil, provavelmente ligadas aos centros de saúde, com um horário de 24 horas em muitos dos casos. Porque é disto que o cidadão precisa”, advoga Nelson Olim.
Defende ainda a criação de uma especialidade específico de urgência/emergência, porque “requer conhecimentos técnicos próprios e competências que um médico que faz 12 ou 18 horas de urgência por semana não consegue adquirir”.
Convencido de que a especialidade iria “melhorar a qualidade do serviço prestado aos cidadãos”, Nelson Olim entende que será também “um fator importante para ajudar a uma reestruturação maior” dos serviços de urgência no país.
Portugal é um dos quatro países europeus que ainda não têm a especialidade de medicina de urgência e emergência, mas a Ordem dos Médicos admite estudar a sua criação.
São mais de 80 países no mundo que criaram já a especialidade em medicina de urgência e emergência, 27 deles na Europa, segundo a Sociedade Europeia para a Medicina de Urgência/Emergência, que defende que a especialização e um sistema bem organizado são “capazes de aumentar a sobrevivência e reduzir a incapacidade depois de qualquer situação de urgência ou emergência médica”.
Em Portugal, o centro da discussão será a Ordem dos Médicos, entidade que tem a competência para definir e criar novas especialidades médicas, como lembra o bastonário Miguel Guimarães.
Atualmente existe em Portugal uma competência em emergência médica, a que pode aceder qualquer médico, mas não há qualquer especialidade específica que englobe medicina de urgência e emergência.
O bastonário dos Médicos admite que este debate se possa fazer em breve dentro da Ordem, contudo não acredita que seja através da criação da especialidade que se consiga alterar o problema dos serviços de urgência em Portugal.