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Covid-19: Num mundo em suspenso, a ciência está mais ativa do que nunca

LUSA
01-05-2020 08:57h

A pandemia da covid-19, que colocou o mundo em suspenso, pôs a ciência mais ativa do que nunca: cientistas produzem estudos e resultados a um ritmo acelerado para obterem respostas sobre uma doença contagiosa causada por um vírus novo.

A reflexão foi feita à Lusa pelo físico Carlos Fiolhais e pelo bioquímico David Marçal, ambos autores de livros de divulgação de ciência.

Os dois advertem que as oportunidades e os desafios gerados pela pandemia, como o aumento da colaboração, produção e conhecimento científicos, não estão isentos de riscos, como a falta de rigor dos resultados e a incerteza das soluções, nomeadamente em termos de tratamentos e vacinas, perante o desconhecido.

"Já sabemos muito sobre o vírus e cada dia sabemos mais (...). Mas é preciso passar a saber coisas que não sabemos ainda, é isso a investigação científica", resume David Marçal.

O coronavírus, um tipo de vírus que é assim chamado devido à sua forma de coroa, foi detetado em dezembro, na China, e disseminou-se pelo mundo em pouco tempo, obrigando ao confinamento, distanciamento e à alteração de hábitos na vida e rituais na morte. Além de se propagar facilmente e provocar uma doença respiratória aguda, o SARS-CoV-2 mata sobretudo idosos.

Em quatro meses, num verdadeiro contrarrelógio, cientistas publicaram inúmeros estudos, testaram hipóteses, avançaram para ensaios de medicamentos e vacinas, partilharam resultados em plataformas digitais, trocaram experiências em videoconferências, juntaram-se em redes de trabalho.

A 11 de janeiro foi divulgada a sequência genética do novo coronavírus, dois meses depois começou a ser testada, nos Estados Unidos, a primeira vacina candidata à covid-19. Outras se têm seguido.

David Marçal, bioquímico de formação, não tem dúvidas de que "há uma colaboração científica sem precedentes", com pessoas, tecnologia e dinheiro a serem redirecionados para a investigação da covid-19.

Segundo o autor de "Pseudociência", existe também "uma verdadeira ciência aberta", com os cientistas "a divulgarem resultados preliminares, antes da publicação, para que outros possam continuar o trabalho rapidamente, avançando por outras áreas de especialidade".

"Normalmente, um artigo submetido a uma revista científica pode demorar meses, ou até mais de um ano, a ser publicado. Agora, os artigos sobre a covid-19 são publicados numa ou duas semanas", acrescenta.

O físico Carlos Fiolhais aponta a "publicação rápida de resultados e análises" como "uma mudança muito visível na ciência", mas não sem alertar para um perigo: a falta de rigor.

De acordo com o professor na Universidade de Coimbra, "muitos trabalhos não estão certos", por se basearem em "amostras limitadas" ou por "não ter havido suficiente cuidado na verificação" dos dados.

"Pode não ser por fraude (que também pode haver) mas por precipitação", sustenta, assinalando que "há conclusões contraditórias" em estudos que requerem meta-análises.

"A ciência nunca é um artigo, mas sim o consenso que se gera a certa altura a partir da discussão de vários, muitos, artigos", defende.

Para Carlos Fiolhais, "alguns anúncios que se estão a fazer" sobre potenciais vacinas e medicamentos para a covid-19 também "são precipitados, não querendo mais do que ganhar a atenção mediática, que possa garantir financiamento".

"Quem chegar primeiro a uma vacina segura e eficaz vai ficar rico", atira, sublinhando que o fabrico e a administração em massa de uma ou mais vacinas é "um processo moroso" que envolve questões éticas, políticas e económicas, além das científicas.

O diretor do Rómulo - Centro Ciência Viva enumera algumas das questões: Quem deve ser vacinado primeiro? Os grupos de risco? A vacina deve ser obrigatória, pelo menos nalgumas circunstâncias? Como legislar a vacinação? Como organizar programas de vacinação à escala internacional? O erário público vai pagar tudo ou há comparticipação? Deve-se escolher a vacina mais barata em detrimento de outra mais eficaz? ​​​

O bioquímico David Marçal enfatiza que encontrar uma vacina ou um tratamento para a covid-19 "não é um processo administrativo para o qual se possa fazer um cronograma, que irá ser cumprido desde que nele sejam empregues suficientes recursos".

"É preciso imaginação e engenho. Às vezes há caminhos que parecem promissores, mas que não conduzem a uma solução. E é preciso repensar tudo", refere.

Para o fundador da rede GPS, um portal que permite localizar os cientistas portugueses que trabalham no estrangeiro, os riscos são "os inerentes ao desconhecido".

"Não sabemos realmente quando (e se) encontraremos um tratamento ou uma vacina eficaz", frisa, considerando, porém, que existe uma esperança alicerçada num "esforço sem precedentes" de "muitos cérebros contra o vírus".

Apesar de a pandemia ter fechado laboratórios "em muitas partes do mundo", a ciência "está mais ativa do que nunca", segundo Carlos Fiolhais, com "os encontros entre cientistas" a fazerem-se "através dos meios telemáticos que a própria ciência proporcionou".

A seu ver, a covid-19 convocou não só os cientistas especializados em doenças infecciosas e vírus, mas também os demais, os que, não fazendo investigação neste domínio, se mobilizaram para "tarefas práticas", como a realização de testes de despistagem ao coronavírus SARS-CoV-2 e a construção de viseiras de proteção com impressoras 3D.

Embora a mobilização dos cientistas seja generalizada, Carlos Fiolhais entende que a pressão da sociedade, que pede respostas e soluções rápidas, recai mais sobre infeciologistas, epidemiologistas e virologistas, que lidam de frente com a investigação do problema.

"Mas a ciência não funciona por passes de mágica, não tira coelhos da cartola, demora necessariamente o seu tempo para se minimizarem os erros", avisa, advogando que, não sendo "uma fonte de certezas", a ciência "é o meio mais fiável para diminuir a incerteza" perante um novo vírus, que "tem um comportamento nalguns aspetos estranho".

Na ausência ainda de provas só resta ao físico "crer que haverá uma solução" para combater a covid-19, que, admite, pode ser uma "tecnologia farmacêutica baseada na bioquímica", a imunidade adquirida, ainda que não se saiba por quanto tempo, por "exposição controlada ao vírus" ou a diminuição da letalidade do vírus devido às suas mutações genéticas.

"Não sabemos", ressalva, pois "ninguém consegue prever as soluções", mesmo as mais criativas, "precisamente porque são criativas".

O cientista, que escreveu "Física divertida", lembra, no entanto, que é "em momentos de crise" que se aguça "o engenho humano", evocando a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

"Deu o radar, o computador e a energia nuclear, que mudaram completamente o mundo. Talvez aí haja um paralelo".

A covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, já provocou em todo o mundo mais de 230 mil mortes e infetou cerca de 3,2 milhões.

Em Portugal, os últimos dados oficiais registam quase mil mortos associados à covid-19 e mais de 25.000 pessoas infetadas. 

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