Analistas advertem que a China, motor de recuperação da economia mundial na última década, não pode agora reerguer uma economia mundial em recessão, face ao alto nível de endividamento da classe média chinesa e exclusão da população rural.
"Durante muito tempo, a galinha dos ovos de ouro foram as poupanças abundantes das famílias e o baixo nível de endividamento, mas as coisas mudaram", aponta o banco de investimentos francês Natixis, num relatório intitulado a "Covid-19 expõe a acumulação da dívida doméstica da China e os seus riscos".
Após a crise financeira internacional de 2008, o país asiático lançou um pacote de estímulos avaliado em 586.000 milhões de dólares (541.000 milhões de euros).
Nos anos seguintes, enquanto as economias desenvolvidas estagnaram, o país asiático construiu a maior rede ferroviária de alta velocidade do mundo, mais de oitenta aeroportos ou dezenas de cidades de raiz, alargando a classe média chinesa em centenas de milhões de pessoas.
A China tornou-se, entretanto, a segunda maior economia do mundo e o principal motor de recuperação da economia mundial, assumindo-se como o maior mercado automóvel e de vários bens de consumo ou matérias-primas a nível mundial.
No entanto, segundo a agência suíça Bank for International Settlements (BIS), durante o mesmo período, a dívida do Estado, das famílias ou empresas, quase duplicou, para 257% do Produto Interno Bruto (PIB).
O banco de investimentos francês Natixis nota que, entre 2011 e 2019, "a dívida das famílias cresceu de 28% para 55%, face ao PIB chinês, um crescimento médio anual de 19%".
"O surto do coronavírus exacerbou um problema já existente", lê-se no documento.
Em 2018, por exemplo, os consumidores chineses gastaram mais de 277 mil milhões de dólares (255 mil milhões de euros) em viagens ao exterior, um aumento de 5,2%, em relação ao ano anterior, segundo a Organização Mundial do Turismo.
O equilíbrio no orçamento das famílias, no entanto, deverá agora tornar-se uma prioridade, enquanto ligações aéreas foram suspensas e vários países baniram a entrada a não residentes.
"Os chineses, neste momento, querem segurar o dinheiro que têm na mão", descreveu à agência Lusa Yang Yang, que vende artigos de luxo trazidos da Europa. "Existe grande incerteza quanto ao futuro", admitiu.
No primeiro trimestre deste ano, a China sofreu a pior contração económica desde 1970, após ter paralisado durante quase dois meses, devido às medidas para travar a epidemia da covid-19, segundo dados anunciados na sexta-feira.
Muitas empresas estão a pagar aos funcionários apenas o salário mínimo estipulado pelas respetivas províncias e cidades. No caso de Pequim, este valor está fixado em 2.000 yuan (260 euros), cerca de metade do valor da renda de um quarto na capital chinesa, por exemplo.
O consumo doméstico, que no ano passado compôs 80% do crescimento económico da China, afundou 19%, em termos homólogos, entre janeiro e março, abaixo da maioria das previsões.
A comprometer a força de consumo do país está também a população rural - incluindo centenas de milhões de migrados nas cidades - e que constituem, efetivamente, uma "subclasse", descreve Dexter Robert, autor do livro The Myth of Chinese Capitalism (‘O Mito do Capitalismo Chinês’).
"Em vez de se juntarem às fileiras de novos consumidores, como muitos esperavam, os chineses rurais tornaram-se, efetivamente, numa subclasse", nota.
Os seus rendimentos são cerca de metade do que os residentes urbanos recebem anualmente e à medida que as indústrias se automatizam e a procura por mão-de-obra intensiva diminui, "as pessoas dos meios rurais vão ter dificuldades em se reinventarem como prestadoras de serviços, operários ou empreendedores", explica.
Em causa está o restrito sistema de residência das principais cidades do país, conhecido como "hukou", que priva os trabalhadores migrantes de serviços básicos, como o acesso à educação ou saúde pública.
"O ‘hukou’ exige que os chineses rurais reservem grande parte dos seus rendimentos para cobrir despesas médicas inesperadas, propinas ou para a sua velhice", afirma Robert.
"Tudo isso evita que as pessoas registadas nas áreas rurais consumam tanto como os residentes urbanos", conclui.