Um pacote de ajuda económica “sem precedentes”, com apoios para trabalhadores, empresas e Estados, foi acordado na noite passada pelos ministros das Finanças europeus, com os olhos postos na devastação de hoje e na recuperação de amanhã.
O continente europeu, atual epicentro da pandemia com centenas de milhares de casos confirmados de covid-19 e dezenas de milhares de mortos, enfrenta a pior crise económica desde a Segunda Guerra Mundial, com contas públicas fragilizadas, negócios parados e vidas suspensas à espera que o surto seja contido.
E, numa altura em que se estima a perda de 15 milhões de postos de trabalho na Europa e perdas avultadas em vários setores de atividade devido à covid-19, os ministros das Finanças da União Europeia (UE) estiveram reunidos na noite passada para decidir quais as ferramentas para combater esta guerra, com foco no presente, mas também no ‘dia seguinte’.
Eis os resultados alcançados na quinta-feira à noite pelo Eurogrupo sobre a resposta económica à covid-19:
+++ O que foi acordado +++
Numa ‘maratona’ negocial do Eurogrupo, que decorreu entre terça-feira e quinta-feira e alargada aos países que não fazem parte do espaço da moeda única, os responsáveis pelas Finanças comunitárias chegaram a acordo sobre um “pacote de dimensões sem precedentes” para fazer face à crise provocada pela pandemia da covid-19, que inclui “redes de segurança” para trabalhadores, empresas e Estados-membros e ascende a 500 mil milhões de euros.
Entre os instrumentos aprovados está a proposta apresentada em 02 de abril passado pela Comissão Europeia de um instrumento temporário, o “Sure”, que consistirá em empréstimos concedidos em condições favoráveis pela UE aos Estados-membros, até um total de 100 mil milhões de euros, com o objetivo de ajudar os Estados a salvaguardar postos de trabalho através de esquemas de emprego temporário.
Para as empresas, a solução acordada passa pelo envolvimento do Banco Europeu de Investimento (BEI), através de um fundo de garantia pan-europeu dotado de 25 mil milhões de euros, que permitirá mobilizar até 200 mil milhões de euros suplementares para as empresas em dificuldades, sobretudo pequenas e médias empresas.
Aprovadas foram também linhas de crédito do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE), o fundo de resgate permanente da zona euro, destinadas a cobrir custos direta ou indiretamente relacionados com a resposta a nível de cuidados de saúde, tratamento e prevenção da covid-19.
A grande questão que estava em aberto, e que fez arrastar as discussões, era a das condições de acesso a estas linhas, cujo montante pode chegar aos 2% do Produto Interno Bruto (PIB), num total de perto de 240 mil milhões de euros, no conjunto dos 27.
Falando em videoconferência de imprensa na quinta-feira à noite, o presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, explicou que estas linhas de crédito serão disponibilizadas a todos os países, sendo que “o único requerimento […] é que o país se comprometa com a utilização destes fundos para apoiar o financiamento nacional de custos relacionados, direta e indiretamente, com cuidados de saúde, tratamento e prevenção relacionados com a covid-19”.
O também ministro das Finanças português adiantou esperar que todo este pacote de apoio aos Estados-membros esteja “operacional dentro de duas semanas”, referindo que começou já uma discussão sobre o plano de relançamento da economia europeia, para ser implementado quando for ultrapassada a crise de saúde decorrente da pandemia da covid-19.
Sublinhando que um pacote desta envergadura era “impensável há apenas algumas semanas”, Mário Centeno contrapôs a resposta agora dada, “em tempo recorde”, com a reação da Europa à anterior crise, há cerca de 10 anos, quando se “fez muito pouco, e muito tarde”.
“Estivemos à altura do desafio”, concluiu.
+++ O que ainda falta decidir +++
Embora tenha sido manifestada nesta maratona negocial “vontade política” para avançar com um instrumento de recuperação para o ‘dia seguinte’ à pandemia, faltou consenso para definir o seu conteúdo, com o Eurogrupo a passar a ‘bola’ aos chefes de Governo e de Estado da UE.
Assim, na reunião que terminou na quinta-feira à noite, o Eurogrupo acordou a criação de um fundo de recuperação após a crise gerada pela covid-19, mas pediu aos líderes europeus para decidirem “o financiamento mais apropriado”, se através da emissão de dívida ou de “formas alternativas”.
“Acordámos a criação de um fundo de recuperação, que irá alavancar a nossa economia e os investimentos que precisamos”, anunciou o presidente do Eurogrupo, Mário Centeno, frisando que “este será um fundo temporário e ligado às despesas da covid-19”.
O responsável explicou que a decisão cabe aos líderes europeus visto que, no fórum dos ministros das Finanças europeus, “alguns Estados-membros expressaram que o fundo deveria ser suportado pela emissão de dívida conjunta [os chamados ‘eurobonds’ ou ‘coronabonds’], enquanto outros defenderam formas alternativas”.
Assente ficou que “é preciso delinear algo novo”, precisou Mário Centeno.
“Agora aguardamos as diretrizes do Conselho Europeu porque há formas diferentes de suportar este fundo e temos de discutir o financiamento apropriado”, acrescentou.
Caberá agora aos líderes europeus, que se deverão reunir nos próximos dias, acordar os detalhes deste fundo de recuperação, desde logo as fontes de financiamento, os aspetos jurídicos e ainda a sua relação com o orçamento da UE.
+++ Proposta de ‘coronabonds’ defendida pelo sul ainda longe da unanimidade +++
Defendida por muitos, sobretudo no sul da Europa, a ideia de emissão de títulos de dívida conjunta – ‘eurobonds’, chamados atualmente de ‘coronabonds’ por visarem a crise provocada pelo coronavírus – continua a conhecer forte resistência por parte dos países que sempre se opuseram à mutualização da dívida, com Alemanha e Holanda à cabeça.
Estados-membros como Portugal, Espanha e Itália consideram que esta é a solução mais justa, solidária e global para fazer face a uma crise que, ao contrário da ‘crise do euro’, é simétrica, e à qual não se podem apontar quaisquer responsabilidades a este ou àquele Estado-membro.
Atualmente, cada país da zona euro emite títulos de dívida nos mercados de obrigações, com garantias nacionais. Os ‘coronabonds’ seriam emitidos em nome da União Europeia, o que significa que seriam emissões de dívida partilhadas pelo conjunto dos Estados-membros, protegendo assim os mais frágeis de especulações de mercado e taxas de juro altíssimas.
+++ Reações de altos representantes europeus +++
Logo na quinta-feira à noite, os presidentes do Conselho Europeu e do Parlamento Europeu reagiram, com satisfação, ao acordo alcançado pelo Eurogrupo em torno de um pacote económico de resposta à crise decorrente da pandemia covid-19, que consideram adequado e sólido.
“O Eurogrupo chegou a acordo sobre um pacote sólido de instrumentos para responder à crise covid-19 num espírito de solidariedade”, comentou o presidente do Conselho, Charles Michel, numa mensagem na sua conta na rede social Twitter, a dar conta do compromisso em torno de “uma rede de segurança europeia de 500 mil milhões de euros” para apoiar trabalhadores, empresas e economias.
Charles Michel – que deverá convocar para muito em breve um Conselho Europeu, de modo a que os chefes de Estado e de Governo da UE se pronunciem sobre as propostas acordadas pelos ministros das Finanças – acrescentou que agora há que “preparar terreno para uma forte recuperação”, de modo a relançar as economias europeias uma vez ultrapassada a crise de saúde.
Por seu lado, o presidente do Parlamento Europeu, o italiano David Sassoli, também numa mensagem no Twitter, felicitou os ministros das Finanças europeus, considerando que “as propostas do Eurogrupo vão na boa direção”.
“Tivemos razão em confiar na Europa. Nesta batalha pela reconstrução, o Parlamento Europeu vai, como sempre, desempenhar o seu papel na defesa dos cidadãos europeus”, escreveu.
Já esta manhã, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, congratulou o Eurogrupo e o seu líder, Mário Centeno, pelo “acordo crucial” alcançado, e garantiu que o executivo comunitário “vai responder” para a criação do fundo de recuperação face à covid-19.
“Saúdo o resultado crucial alcançado ontem [quinta-feira à noite] pelo Eurogrupo e pelo presidente Mário Centeno”, escreveu a responsável no Twitter.
Na publicação, Ursula von der Leyen congratulou-se também com a aprovação do programa proposto pela Comissão Europeia para “manter as pessoas empregadas” durante a crise gerada pela covid-19, o “Sure”.
Já relativamente ao ‘dia seguinte’, Von der Leyen garantiu que “a Comissão Europeia irá responder ao apelo [feito pelo Eurogrupo] para uma ação decisiva através de um plano de recuperação e de um quadro financeiro plurianual reforçado”, isto em “cooperação com o presidente do Conselho Europeu”, o belga Charles Michel.
+++ Reações em Portugal +++
Na quinta-feira à noite, o primeiro-ministro, António Costa, defendeu que, ultrapassado o impasse negocial no Eurogrupo, é importante que o Conselho Europeu se reúna "o quanto antes" para acordar uma resposta comum à crise motivada pela pandemia de covid-19.
"Ultrapassado o impasse no Eurogrupo, abre-se agora espaço para que o Conselho Europeu possa reunir o quanto antes para acordar uma resposta comum europeia a esta crise que nos atinge a todos", escreveu António Costa no Twitter.
Também na noite passada, mas em entrevista à SIC, o presidente do PSD, Rui Rio, considerou ser fundamental que a Europa tenha soluções “para se financiar como um todo”, em particular os países com mais dificuldades, devido à pandemia, sob pena de se agravarem ainda mais as desigualdades.
“Se não houver por via da UE, um país como Portugal, um país como a Itália, que têm níveis de dívida pública absolutamente brutais, se são largados no mercado, as taxas de juro sobem de uma forma brutal”, advertiu Rui Rio.
+++ O que já disseram os sindicatos +++
A Confederação Europeia de Sindicatos, a principal entidade representativa dos trabalhadores europeus, saudou na quinta-feira à noite as “medidas importantes” adotadas pelo Eurogrupo para “proteger” o emprego na UE, apelando para que entrem em vigor antes da Páscoa.
“O Eurogrupo adotou, finalmente, medidas importantes para ajudar a proteger os trabalhadores, apoiar as empresas, financiar os serviços públicos e estabilizar a economia perante esta crise a curto prazo”, afirmou o secretário-geral da Confederação Europeia de Sindicatos (CES), Luca Visentini, em comunicado.
Para o responsável, estes instrumentos “vão na direção certa”.
“Pedimos agora aos governos dos 27 Estados-membros que transponham estas medidas antes da Páscoa”, apelou Luca Visentini, destacando que, “com 15 milhões de empregos já afetados” pela crise gerada pela pandemia, “os trabalhadores e as empresas não podem esperar mais tempo”.
Representativa de 89 organizações sindicais - entre as quais a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) e a União Geral de Trabalhadores (UGT) -, a CES aplaudiu também os “progressos feitos no sentido de estabelecer um plano de recuperação sólido para a UE”.
+++ Séries de reuniões +++
O acordo foi alcançado pelos ministros das Finanças exatamente no final do prazo de duas semanas que lhes tinha sido dado pelos líderes europeus, nas conclusões do Conselho Europeu de 26 de março passado, e no âmbito de uma reunião que começou na terça-feira e só terminou na quinta-feira à noite, após horas de suspensão e de pausa para negociações bilaterais.
Esta foi a quarta reunião por videoconferência dos ministros das Finanças europeus consagrada à resposta aos efeitos da pandemia covid-19 nas economias europeias, no espaço de sensivelmente um mês.
As anteriores reuniões presididas por Mário Centeno – e alargadas aos países que não fazem parte da moeda única – tiveram lugar em 04, 16 e 24 de março.
+++ Polémica na última reunião +++
Na anterior reunião do Eurogrupo, realizada em vésperas da cimeira de líderes da UE de 26 de março, o ministro das Finanças holandês teve a ‘famosa’ intervenção que suscitou a indignação dos países do sul da Europa, com o primeiro-ministro António Costa à cabeça.
De acordo com fontes citadas na imprensa europeia, Wopke Hoekstra afirmou que a Comissão Europeia devia investigar países, como Espanha, que afirmam não ter margem orçamental para lidar com os efeitos da crise provocada pelo novo coronavírus, apesar de a zona euro estar a crescer há sete anos consecutivos.
Dois dias depois, em conferência de imprensa após a reunião do Conselho Europeu, António Costa, questionado sobre a opinião expressa por Hoekstra, considerou-a “repugnante”. A indignação teve eco internacionalmente, várias vozes juntaram-se à do primeiro-ministro português, e cinco dias volvidos, em 31 de março, o ministro holandês reconheceu publicamente que foi infeliz e que mostrou pouca “empatia” para com os países do sul da Europa.
Este episódio e o atual braço de ferro entre os países do norte e do sul são no entanto um sinal evidente de que as velhas feridas da anterior ‘crise do euro’ não sararam por completo ao longo dos últimos 10 anos, e bastou chegar uma nova crise para ficarem de novo expostas (se é que não estavam já nas discussões sobre o próximo orçamento plurianual da UE, com o ‘combate’ entre os países da coesão e os chamados ‘frugais’).