Os cancelamentos e adiamentos de espetáculos provocados pela pandemia da covid-19 e pelo estado de emergência estão a avivar a “precariedade” e a obrigar a "100% de paragem no trabalho", disseram hoje dois coreógrafos portugueses à Lusa.
Marco da Silva Ferreira, coreógrafo de dança contemporânea, nascido há 33 anos em Santa Maria da Feira, define este momento de crise na Cultura como um fase que vem atiçar a “precariedade” vivida pelos artistas, que enfrentam espetáculos cancelados ou adiados e ‘cachets’ comprometidos.
“A precariedade veio vincar-se ainda mais agora com esta pandemia. Queremos evitar uma catástrofe para os artistas”, declara o bailarino interprete de artes performativas que ganhou em 2017 a primeira edição nacional do concurso televisivo "Achas que Sabes Dançar?".
Marco da Silva Ferreira observa que os projetos artísticos previstos para março e abril não vão ser realizados e, por isso, muitos artistas vão ficar “sem os ‘incomes’ [salários] desses meses”, porque, de repente, “houve um corte para que ninguém estava preparado”.
O bailarino e coreógrafo diz que, neste momento de “pausa”, “tudo anda um pouco no ar e à toa”, havendo também uma “sensação de desvendamento”, onde se apresentam “novas pistas para mudar o que está mal” no setor da Cultura.
“Não é uma clarividência sobre o modelo perfeito de ação, mas há novas pistas para saber o que mudar [na Cultura]”, observou, defendendo que a arte, seja dança, teatro ou outra, devia ser encarada “como um serviço público bem protegido” e não um “mero serviço comprado” que simplesmente se cancela, como se deixa de comprar um bem alimentar qualquer.
Marco da Silva Ferreira está por estes dias, em casa, em negociações com os vários teatros e festivais de França, Espanha e Alemanha, porque os espetáculos que ali estavam programados fazer com a sua equipa artística foram “cancelados”.
“O que queremos é garantir os ‘cachets’ da equipa artística. Neste momento não queremos ter lucro para a estrutura, abdicámos dessa margem”, explica.
A cocriação “Siri” que Marco da Silva Ferreira estava a preparar para estrear no Festival Dias Da Dança (DDD), em maio, na cidade do Porto, também foi cancelado.
Como forma de o rendibilizar decidiu fazer um 'copy-paste' do projeto para a edição do festival DDD, em 2021.
Para o bailarino, o caminho a trilhar é o da “sensibilização das estruturas culturais”, como o Teatro Municipal do Porto, para que estas possam “reinjetar um extra [de verbas] para conseguir garantir os 'cachets' das equipas em 2020 e 2021”.
O coreógrafo nascido na cidade de Guimarães Victor Hugo Pontes, 42 anos, com projetos na área da dança contemporânea e colaborações em espetáculos de teatro, avançou hoje à Lusa que a pandemia o obrigou a uma paragem de “100% de todas as atividades” programadas entre março a junho, onde se incluía a formação e circulação de espetáculos a nível nacional e internacional.
“Esta situação coloca-nos numa posição de fragilidade perante todas as equipas técnicas e artísticas que integravam as nossas produções, uma vez que não há um estatuto de profissional intermitente do espetáculo, onde os artistas poderiam estar mais protegidos”, desabafa Vitor Hugo Pontes.
O coreógrafo revela que está em teletrabalho a tentar manter o trabalho de produção ativo, mas a parte prática está impedida de ser realizada, porque o trabalho de estúdio e de ensaios implica contacto direto com pessoas, o que não é possível tendo em conta as condicionantes atuais derivadas do estado de emergência em Portugal.
“Neste momento estamos mais focados num trabalho de reflexão e de avaliação do impacto financeiro na nossa atividade, e em perceber como encontrar soluções para atenuar as repercussões desta crise financeira na vida e no orçamento de cada colaborador”, assume.
Autor do bailado “Se alguma vez precisares da minha vida, vem e toma-a", partir de "A Gaivota", de Tchekhov, Vitor Hugo Pontes conta que também tem pensado numa forma de manter “alguma proximidade com o público” e revela que está a estudar os meios para oferecer conteúdos às pessoas que têm interesse na área, nomeadamente disponibilizando ‘online’ trabalhos que criou.
Sem atividade há um mês e sem perspetiva de quando, como e em que condições a pode retomar, o coreógrafo confessa que criativamente se sente desmotivado e que procura levar um “dia de cada vez, não pensando muito no futuro”.
“Não é possível prever quando poderemos voltar a estar juntos, dentro de uma sala de espetáculos com público a assistir ou num estúdio, em que o diálogo se faz através do toque, da proximidade dos corpos e das relações afetivas e emocionais. Quando estas são as tuas ferramentas de trabalho e estás privado de as usar, ficas numa situação de incapacidade. Esta poderá ser uma visão pouco otimista, mas é o que sinto no dia de hoje, num tempo novo, em que os afetos nos estão vedados, mesmo quando temos de lidar com a perda de familiares e pessoas próximas”.
Esta semana, um conjunto de dezenas de promotores e agentes culturais escreveu ao Governo e ao parlamento a pedir uma linha de crédito específica para o setor e alterações ao decreto-lei que regula os adiamentos de espetáculos.
Numa carta subscrita por um coletivo de mais de 80 agentes e produtores, a maioria dos quais também presente em várias outras posições a apelar à defesa dos seus direitos junto de autarquias e dos demais poderes públicos, é pedido ao Governo e aos partidos políticos que se defina, “sem tibiezas ou margem para dúvidas, que, nos casos de reagendamento [de espetáculos] não haverá lugar à restituição do preço dos bilhetes, o que só se infere do diploma pela via interpretativa”.
Na quarta-feira, a Assembleia da República aprovou duas propostas incluídas num projeto de lei do Bloco de Esquerda (BE) para o setor da Cultura, que preveem o pagamento, por entidades públicas, de espetáculos cancelados como se se tivessem realizado.
A aprovação diz respeito a duas alterações de um artigo do decreto-lei de 26 de março, a que os agentes e produtores se referem, e que regula os espetáculos cancelados ou adiados.
O novo coronavírus, responsável pela pandemia da covid-19, já infetou mais de 1,5 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais morreram mais de 87 mil.
Em Portugal, segundo o balanço feito na quarta-feira pela Direção-Geral da Saúde, registaram-se 380 mortes, mais 35 do que na véspera (+10,1%), e 13.141 casos de infeções confirmadas, o que representa um aumento de 699 em relação a terça-feira (+5,6%).