O Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV) defende num parecer hoje divulgado a revisão da legislação sobre a transplantação, para permitir a doação de órgãos de recém-nascidos ou até um ano.
Esta recomendação resulta do parecer sobre “Doação de órgãos em neonatologia para fins de transplantação” aprovado em reunião plenária do CNECV na sexta-feira, em que foram debatidos os complexos desafios clínicos, jurídicos e éticos associados à colheita de órgãos no período neonatal.
A médica Margarida Silvestre, uma das relatoras do parecer, disse à agência Lusa que a reflexão foi suscitada por uma questão colocada por uma obstetra em novembro de 2023 perante a decisão de uma grávida que não quis interromper a gravidez, após diagnóstico de anencefalia e manifestou interesse em doar os órgãos do filho a outras crianças que necessitassem de transplante.
“Uma criança que tem uma deficiência grave do sistema nervoso central (caracterizada pela ausência, geralmente parcial, do encéfalo e da calote craniana) acaba por não reunir os critérios de morte cerebral, que são aqueles que em Portugal são aceites. Portanto, teria que haver efetivamente, para tal, uma revisão da legislação nacional”, explicou a conselheira.
No parecer, o CNECV refere que a alteração da legislação é no sentido de permitir, como dadores, pessoas com morte declarada por paragem cardiocirculatória irreversível, para potencializar “uma maior disponibilidade de órgãos para transplante, uma possibilidade acrescida de salvar vidas”.
Após ouvir diversos peritos nas áreas da transplantação e da pediatria, entre os quais intensivistas pediátricos, o Conselho concluiu que havia necessidade de alargar o parecer sobre doação de órgãos de anencéfalos aos recém-nascidos em geral, especialmente diante da elevada mortalidade infantil provocada pela espera de transplante, sobretudo no primeiro ano de vida.
Margarida Silvestre disse que há órgãos que têm de ser compatíveis em termos de dimensão, não podendo, por isso, ser utilizados dadores adultos para fazer muitos dos transplantes necessários.
Também relatora no parecer, Inês Fernandes Godinho, jurista, disse à Lusa que, desde que o Conselho começou a trabalhar esta problemática no início deste ano, foram encontrando dificuldades e várias questões nesta matéria.
Uma das questões foi como conseguir, “pensando no sistema beneficente da transplantação, encontrar um caminho, numa área em que existem as maiores dificuldades, que fosse eticamente sustentado e juridicamente possível”.
A jurista defendeu que Portugal deve alargar a adoção dos critérios da Declaração de Maastricht, como já ocorre em outros países europeus, que permita a colheita em situações em que o diagnóstico de morte cerebral não é possível como é o caso os recém-nascidos anencéfalos.
“O que se pretende é a inclusão de critérios que alarguem o universo de dadores para se poder salvar mais vidas e ter um país com desempenho europeu, ou seja, em que não temos de ter a penúria de falta de órgãos e afirmarmo-nos como um dos países mais bem-sucedidos em matéria de transplantação, que é isso que todos queremos”, declarou Inês Fernandes Godinho.
O CNECV recomenda também que, nos recém-nascidos com doença grave no período neonatal, submetidos a medidas terapêuticas que passam a afigurar-se desproporcionadas perante a evolução para prognóstico fatal, os profissionais de saúde devem informar os pais sobre a possibilidade de doação, para que possam decidir sobre a manutenção de medidas que, já não sendo terapêuticas, preservam os órgãos para colheita.
“Qualquer que seja a decisão dos pais, deve-lhes ser disponibilizado apoio psicológico ao longo de todo o processo, incluindo na vivência do luto”, salientou.
O CNECV defende ainda “uma clara separação e independência entre a equipa médica de verificação de morte e a da transplantação, para evitar quaisquer conflitos de interesse”, e “formação adequada” para os profissionais de saúde na comunicação de más notícias e na gestão do processo de doação com os pais.
Margarida Silvestre salientou que a doação pode ser uma ajuda para muitos pais, porque “de alguma forma encontram um sentido que os ajuda a ultrapassar o luto na perspetiva de que estão a ajudar a viver outras crianças”.