Os idosos do Lar do Comércio, em Matosinhos, decidiram gravar `podcasts´ com as suas histórias de vida para comunicar com o exterior, numa altura em que a pandemia de covid-19 lhes “rouba” os beijos, abraços e visitas dos familiares.
Estes `podcasts´ - publicações de ficheiros áudio na internet – duram cerca de dez minutos e relatam, na primeira pessoa, as histórias de amor, de viagens, de filhos ou de situações caricatas daqueles que moram no lar, agora “limitados na liberdade” devido ao atual estado pandémico.
O primeiro episódio foi divulgado a 13 de fevereiro, Dia Mundial da Rádio, e teve como protagonista Maria Alice, de 90 anos e meio, como se apresentou hoje à agência Lusa, dos quais 17 a viver na instituição.
Quando lhe propuseram gravar um `podcast´, Maria Alice, que “esteve para ser apresentadora da RTP”, nunca tinha ouvido falar em tal.
“Não sabia o que era, nunca tinha ouvido falar, só sabia que era uma coisa diferente, mas não me preocupei muito e lá o gravei porque tudo é bem-vindo”, disse.
Maria Alice, que há anos recusou um convite para ser locutora da RTP por temer ser reconhecida na rua e ter “imensa vergonha”, ouviu-se como ainda não se tinha ouvido” e achou ter uma “voz roufenha e de velhinha”.
A nonagenária contou ter recebido inúmeras mensagens dos três filhos, oito netos e amigos dos filhos que, desde sempre, a tratam por tia.
“Tudo achou muito engraçado, ficaram contentes de me ouvir e agradados com a ideia”, afirmou.
Apesar de ter um computador e utilizar a rede social `whatsapp´ no telemóvel, Maria Alice confessa-se um “zero à esquerda” em tecnologias, mas reconhece a sua utilidade, nomeadamente no atual período de confinamento.
“O confinamento é muito difícil, não só pelos filhos, mas também pelos netos que não nos veem, mas podem-nos ouvir desta forma”, rematou.
Inauguradas que estavam as gravações, seguiu-se o testemunho de Manuel Torres, de 94 anos, que direcionou a conversa para as viagens e a sua mulher, falecida há seis anos.
No lar há 21 anos, Manuel Torres assumiu à Lusa que o `podcast´ lhe foi muito útil para recordar e mostrar como ainda está com “razoável raciocínio”.
O nonagenário confidenciou ter sido a primeira vez que fez um “certo resumo da sua vida”, o que lhe fez bem.
Realçando o amor que o unia à mulher e dizendo serem um só, Manuel Torres explicou que decidiram não ter filhos por considerarem não terem vocação, tendo-se dedicado às viagens.
Entre os vários destinos, destacou Jerusalém como tendo sido o “mais marcante” pelos locais, cultura, pessoas e modo de vida.
Apesar de agora não poder viajar, nem sequer sair, Manuel Torres admitiu, no entanto, que o confinamento é algo que não o está a incomodar muito porque vive acompanhado de leitura e música.
Se inicialmente estranharam, agora os idosos entranharam o conceito e todos querem partilhar a sua história, adiantou à Lusa o presidente do Lar do Comércio, António Bessa, que tomou posse no início deste ano.
Falando num “veículo de comunicação fabuloso para o exterior”, o dirigente da instituição garantiu que todos aqueles que possam vão fazer o seu `podcast´.
“Estamos surpreendidos como estão a aderir a esta brincadeira. Ao saberem que as famílias os podiam ouvir, quiseram logo todos gravar”, ressalvou.
António Bessa entendeu que esta iniciativa é uma forma de os manter ativos, de os estimular e os divertir.
Rir, mas também chorar, é o que faz o casal Violeta e Manuel Giestas, juntos há 65 anos.
De mãos dadas, Violeta e Manuel aproveitaram o seu “tempo de antena” para falar em “diferença”, nomeadamente do filho Rui, portador de Trissomia 21, já falecido.
“Todos os dias me dizia `estás linda mãe´. As pessoas com Trissomia 21 são muito meigas, compreensivas e queridas”, sustentou.
Em período de isolamento, Violeta fala da tristeza de não poder ir ao cemitério e Manuel no que custa “estar preso”.
As saudades da liberdade são muitas, assim como do segundo filho que não podem ver devido à covid-19, mas com quem falam todos os dias.
Também Laurinda Ribeiro, de 89 anos, há três no lar, fala na vontade frequente de chorar por estar confinada e não poder ver os sobrinhos.
A octogenária não tem filhos, não casou, nem tirou Medicina, como queria a sua mãe, contou no `podcast´.
“Menina tripeira”, Laurinda Ribeira reviveu as brincadeiras no Palácio de Cristal, as tentativas de entrada “à socapa” no Teatro Sá da Bandeira e a maior viagem da sua vida, um cruzeiro que a levou ao Brasil.
Contou que, durante a viagem de barco, foi seduzida por um italiano, “à custa de quem bebeu muito vinho”.
Garante que não se envolveu com ele, tendo-o mesmo mandado “dar uma volta”.
“Histórias do Lar” é o nome dos `podcast´ que podem ser ouvidos no `SoundCloud´ (plataforma online de publicação de áudio) ou através do `Spotify´ (serviço de streaming de música, podcast e vídeo) para telemóvel.