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2020: Pandemia de covid-19 revolucionou rotinas e desafiou Aristóteles

LUSA
17-12-2020 09:36h

A pandemia de covid-19 tudo mudou em 2020, com o afastamento social a deixar marcas profundas e a lembrar que Aristóteles tinha razão: o Homem é um animal social.

O afastamento entre as pessoas é uma das formas de prevenir a doença e uma das primeiras a fazer parte dos alertas, a par da lavagem frequente das mãos e dos cuidados a espirrar ou tossir. Em 28 de fevereiro, a diretora-geral da saúde, Graça Freitas, já dava o mote daquela que seria a nova realidade dos portugueses: “Não nos devemos beijar todo o dia e a toda a hora nem devemos confraternizar tanto como habitual”.

Na altura não estavam sequer registados em Portugal casos positivos do novo coronavírus e ninguém previa que 10 meses depois já teriam morrido quase 6.000 pessoas no país e mais de 1,6 milhões em todo o mundo. Nem que os 83 mil casos de infeção em fevereiro iriam passar a 73 milhões, e que só Portugal teria agora quatro vezes mais casos confirmados do que o mundo naquele mês.

Foi este aumento de casos e de mortes que levou a mudanças na vida dos portugueses ao longo do ano, ditadas pelas regras impostas pelo Governo, mas também pelo medo, o medo que explica que quando o Presidente da República declarou em 18 de março o estado de emergência, que contemplava o confinamento obrigatório e restrições à circulação na via pública a partir do dia seguinte, os portugueses já estavam praticamente todos fechados em casa.

Começava então um novo quotidiano, para uns porque a crise económica os levou ao desemprego ou outras situações penalizadoras financeiramente, para outros porque tiveram de se adaptar a uma nova vida, de regras, de uso constante de máscara, de medo de contagiar ou de ser contagiado.

“A grande mudança é a distância física, é uma imposição absolutamente brutal, única e inesperada. Se há um ano nos dissessem que íamos passar um ano assim não acreditávamos. Mas a grande mudança também é a impactante crise socioeconómica e o impacto que tem na saúde psicológica”, diz o psicólogo Tiago Pereira, coordenador do gabinete de crise covid-19 da Ordem dos Psicólogos.

Em declarações à Lusa, a propósito das mudanças que a covid-19 provocou na vida dos portugueses, Tiago Pereira mantém-se sempre otimista em relação ao futuro, mas deixa mesmo assim um alerta: vão morrer pessoas porque se sentem sós, porque a solidão mata.

O isolamento e a crise socioeconómica não são tão visíveis como outras mudanças que trouxe a covid-19, sendo a mais explícita de todas o uso obrigatório de máscara. Em setembro era recomendado o seu uso em espaços públicos e um mês depois era obrigatório. Hoje, alguém sem máscara na rua é uma raridade. E pode ser estigmatizado, como quem espirra ou tosse em público, diz Tiago Pereira.

Para muitos foram também outras mudanças radicais, transformando salas em escritórios e quartos em salas de aula, com o aumento do teletrabalho e da telescola, impostos até pelo Governo. Foram vidas mais sedentárias e foram férias diferentes das habituais, privilegiando locais isolados, em contacto com a natureza.

Um estudo divulgado esta semana, feito nos Estados Unidos, sobre como a covid-19 mudou a relação dos humanos com a natureza, mostrou que houve um aumento exponencial de procura de espaços verdes, até para se lidar com os desafios físicos e mentais da pandemia.

Há poucos estudos sobre esta matéria, mas uma investigação feita também na Noruega indicou que a recreação ao ar livre aumentou 291% durante o confinamento causado pela covid-19. Em Portugal a procura de espaços ao ar livre serviu de escape às limitações provocadas pelas novas formas de estudar e trabalhar, pelo cancelamento em massa de eventos culturais, pelas limitações de viagens e reuniões, pelas restrições ao nível da restauração e, em termos gerais, do convívio.

Aparentemente as pequenas mudanças na vida quotidiana, como não poder entrar livremente em espaços comerciais, estão a ser bem aceites. Mas uma simples ida ao supermercado implica usar máscara, ficar numa fila para entrar, não estar próximo de outras pessoas e desinfetar as mãos.

São situações que, nas palavras de Tiago Pereira, criam a “fadiga da pandemia”. E avisa: “É natural que quando estamos expostos à necessidade de vigilância quase permanente, quando há um estado de cansaço, tenhamos uma carga emocional que nos faz relaxar”.

Com ou sem fadiga, devido ou não a restrições impostas, a verdade é que em menos de um ano as pessoas mudaram hábitos de consumo (compram menos), começaram a comprar muito mais produtos “online”, aumentaram a procura de refeições “take away” e isolaram-se mais em casa, deixaram de frequentar restaurantes e espaços de diversão noturna, evitaram idas a hospitais e centros de saúde (medo de contágio) e preocuparam-se mais com a higiene, sobretudo das mãos.

Em qualquer local público a presença de gel desinfetante é obrigatória, como o são as marcas no chão, estabelecendo percursos para que as pessoas não se cruzem, como o são os apelos generalizados das palavras “mantenha a distância”.

Tudo isto, ainda que não seja visível, está a criar nas pessoas uma mudança mais subtil que é o medo dos outros? “O medo é complexo”, resume Tiago Pereira quando explica que todas as pessoas o sentem, mas não sempre da mesma forma, e que o medo do vírus é diferente, porque é de algo que não se vê, que é uma doença, que provoca alterações socioeconómicas, sobre a qual ainda há poucas informações ou há informações contraditórias, e que se prolonga no tempo.

Por causa dele (tempo) Tiago Pereira fala da fadiga, da perda de confiança das pessoas (nos decisores políticos por exemplo), da perceção do risco que se vai alterando, e conclui: “Naturalmente que mais pessoas vão desenvolver mais vulnerabilidades e naturalmente há um impacto na forma como algumas pessoas se vão relacionar com as outras”.

“Somos hoje uma sociedade que tem mais dificuldades do ponto de vista relacional, uma sociedade mais isolada, com mais pessoas isoladas, mais pessoas a pensar que não conseguem aproveitar os últimos anos de vida (idosos), pessoas com mais dificuldade em prestar apoio. Somos de facto uma sociedade condicionada”, acrescenta.

Tiago Pereira admite que esta é uma das grandes mudanças trazidas pela covid-19.

Se os idosos ficaram isolados nos lares, se as pessoas se afastam das outras (uma regra que tem hoje reflexos até na maior parte da publicidade), se festas e funerais são limitados, se se criam obsessões como a de estar sempre a desinfetar as mãos, ou perceções erradas de associar o espirro e a tosse à covid-19, o especialista acredita que são mudanças que “vão passar”.

O psicólogo deixa um lamento: “Não fizemos tudo na avaliação da perceção do risco das pessoas, para podermos ter uma comunicação mais dirigida”. Mas ainda assim é otimista. Agora, diz, as pessoas estão mais despertas para a saúde, para a importância dos relacionamentos, para a noção de que “somos vulneráveis, mas também resilientes”, para a noção da importância de estar bem e do direito de “estar bem”.

Contas feitas, o medo dos outros, mas ao mesmo tempo a falta deles é do que mais marca a pandemia e o dia-a-dia das pessoas, com Tiago Pereira a acreditar que tudo será recuperado, e que nem as crianças serão demasiado afetadas. Ainda que admita uma dúvida: “Não sei se chegaremos ao mesmo ponto em que estávamos”.

Se não for assim, se vencer o medo e o isolamento, Tiago Pereira estará enganado, como o estava o filósofo grego há 2.300 anos quando disse que o Homem é um animal social. Então alguém se encarregará de escrever “O erro de Aristóteles”.

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