SAÚDE QUE SE VÊ

Covid-19: “É difícil o africano acreditar numa doença que não vê” – antropólogo guineense

LUSA
13-05-2020 11:02h

O antropólogo guineense Hamadou Boiro defendeu hoje que o alastramento da infeção pelo novo coronavírus na Guiné-Bissau também pode ser explicado pelo facto de ser difícil para um africano acreditar numa doença que não vê.

Em pouco mais de um mês, subiu de dois para mais de 800 o número de casos de infeção pela covid-19 e o antropólogo social do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP) da Guiné-Bissau antevê a continuação da tendência, "se não forem adotadas novas estratégias".

"A doença existe, há pessoas a morrerem na Europa, mas aqui não há assim tantos mortos e felizmente ou infelizmente temos muita gente assintomática, pessoas com vírus, mas que não sentem nada, mas que podem estar a transmitir o vírus a outras pessoas", observou Hamadou Boiro.

Mesmo com o estado de emergência, com as restrições de circulação decretadas pelo Governo e perante o aumento de casos de infeção, a maioria da população guineense continua a não acreditar na existência da covid-19.

"É difícil que o africano acredite numa doença que não vê", defendeu Hamadou Boiro.

Quando assim é o investigador só vê a justificação na antropologia, dando o exemplo da persistência dos velórios, mesmo de pessoas falecidas pela covid-19.

"O velório representa muita coisa para o africano. Quem morre não é o responsável, os que ficaram é que têm toda a responsabilidade no engrandecimento do nome do defunto e se não conseguirem velá-lo com dignidade a culpa é deles", sintetizou o investigador.

Para Hamadou Boiro, o ato de velar um defunto, dar-lhe um enterro condigno, ter muita gente no cemitério, "acaba por ser um momento de demonstração da importância social da família do falecido".

O Estado não tem força para confrontar as questões religiosas ou culturais, observou Boiro, recentemente regressado à Guiné-Bissau depois de vários meses na República Democrática do Congo, onde esteve na linha de frente do combate à epidemia do Ébola.

Ao chegar a Bissau, Hamadou Boiro foi contratado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para ajudar na elaboração de uma estratégia de combate à covid-19 e ainda integra o comité científico criado pelo Governo guineense para lutar contra a doença.

Hamadou Boiro não defende o confinamento no modelo que é praticado na Europa.

Na sua perspetiva, o vírus só poderá ser combatido eficazmente na Guiné-Bissau com um "diálogo aberto" com os líderes tradicionais, organizações de mulheres e de jovens, aos quais, disse, deve ser demonstrado "os perigos que a doença representa".

"Temos de conseguir mostrar a estas pessoas que devem ajudar a nação, dizer-lhes que sem o seu empenho no combate à doença, vamos enterrar muita gente", observou Boiro, para quem a "comunicação do risco" deve ser no sentido de "tocar nas crenças" da população.

O investigador não acredita que porque o vírus está a matar pessoas na Europa, que tem mais de 60% da população com mais de 60 anos, a doença vá provocar os mesmos estragos em África.

Segundo disse, a população guineense acima dos 60 anos não ultrapassa as 100 mil pessoas.

O investigador teme, porém, que o pior momento chegue com as chuvas, que ocorrem entre finais de maio e outubro, com o recrudescimento do paludismo, doença que, disse, mata mais pessoas de que qualquer outra patologia.

Nessa altura, Hamadou Boiro receia que a população fique mais frágil, devido à escassez de alimentos, e mais vulnerável à infeção pela covid-19.

Como estratégia, além da campanha de sensibilização aos líderes de opinião nas comunidades, Boiro defende que o Governo devia comprar máscaras e distribuir para a população, reforçar o princípio de distanciamento físico entre as pessoas e consciencializar o grupo da população jovem vulnerável sobre o que é a covid-19 e quais os cuidados que devem ter.

Na Guiné-Bissau, há 820 casos da covid-19 e três pessoas morreram devido à doença.

O Presidente guineense, Umaro Sissoco Embaló, prolongou segunda-feira o estado de emergência no país até dia 26.

O número de mortos da covid-19 em África subiu hoje para os 2.406, com quase 70 mil infetados em 53 países, segundo as estatísticas mais recentes sobre a pandemia naquele continente.

A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou mais de 290 mil mortos e infetou mais de 4,2 milhões de pessoas em 195 países e territórios. Mais de 1,4 milhões de doentes foram considerados curados.

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