A ativista sul-africana Angela Quintal considera que as medidas para a contenção da pandemia de covid-19 estão a ser utilizadas no continente como forma de mascarar uma repressão à comunicação social.
“Temos visto nações a utilizarem a covid-19 como uma forma de mascarar a repressão à comunicação social”, vincou, em entrevista à Lusa, Angela Quintal, coordenadora para África do Comité para a Proteção dos Jornalistas (CPJ), considerando que há “uma grande preocupação com o aumento das violações” à liberdade de imprensa.
Angela Quintal explicou que há países na África Subsaariana que não têm um histórico de criminalização da propagação de desinformação e que utilizaram a pandemia para aprovar a aplicação destas medidas.
“Até num país como a África do Sul, que tem uma Constituição muito forte e é uma das referências na liberdade de imprensa, é possível ver um chamado regulamento em relação à desinformação sobre a covid-19”, disse a coordenadora da ONG, alertando que apesar de este estar “feito de uma maneira bem definida, há preocupação porque pode ser utilizada contra jornalistas”.
Angela Quintal apontou que a aprovação destas normas por países com influência regional provoca um efeito dominó que valida a aprovação por outros países.
“Isto leva os países vizinhos a pensar ‘Se a África do Sul, que é uma das referências na liberdade de imprensa o faz, nós também o faremos’, e utilizam-no como uma desculpa”, assinalou a responsável.
Ainda assim, Angela Quintal, sul-africana de ascendência portuguesa, apontou que o contexto nos vários países representa uma diferença na forma como estas normas são executadas, dando o exemplo do Zimbabué, onde a difusão do que é considerado pelas autoridades como desinformação pode ser punido com até 20 anos de prisão.
“É absurdo. Pode não ser utilizado contra um jornalista neste momento, mas é algo que fica a pairar sobre a cabeça dos jornalistas, e isso leva a que as pessoas se autocensurem”, disse.
Para Angela Quinta, a pandemia está a ser utilizada como uma desculpa para pressionar a liberdade de expressão e o direito da população à informação.
“Acredito que os governos estejam a tentar assegurar que são capazes de controlar a narrativa sobre a covid-19, e tentam afastar os jornalistas quando estão a expor certas coisas que estão a acontecer”, argumentou.
A responsável da ONG teme que os executivos recorram a estes mecanismos para “controlarem a informação, sem estarem necessariamente a explicar que a sua capacidade de testagem é limitada”.
“Por exemplo, no Botsuana, há normas para o estado de emergência que dizem que a informação sobre a covid-19 tem de vir do Governo e, talvez, da Organização Mundial da Saúde. Caso um jornalista queira ir procurar informação – fazendo o seu trabalho enquanto jornalista – junto de um hospital ou falando com médicos e apercebendo-se de uma potencial crise no tal hospital, não pode noticiar, porque será culpado de um crime, segundo esse quadro-legal, e isso é preocupante”, referiu Angela Quintal.
Para a sul-africana, isto demonstra a importância do jornalismo, porque “é necessária mais informação credível”.
Angela Quintal abordou o caso de um jornalista que está preso em Madagáscar, enquanto aguarda julgamento, por ter, alegadamente, difundido desinformação.
“Se há uma repressão desta maneira, vai ser muito difícil para os jornalistas de um país dizerem que o rei vai nu”, disse.
Segundo a responsável do CPJ, nas últimas semanas a ONG registou mais de 120 casos de violações à liberdade de imprensa em situações de cobertura à pandemia de covid-19.
Além destas violações da liberdade de imprensa, Angela Quintal referiu que a saúde dos jornalistas e a instabilidade da profissão são outros pontos que levantam preocupação no seio do CPJ.
“Nem todos os órgãos de comunicação social têm os meios necessários para assegurar que os seus jornalistas têm o equipamento necessário, que têm sequer luvas ou máscaras ou outros materiais de proteção pessoal, e são enviados para situações num momento em que se fala da necessidade do distanciamento social, algo que é quase impossível de cumprir”, lamentou.
A responsável do CPJ para África acrescentou que a ONG tem conhecimento de jornalistas que estão infetados pela doença provocada pelo novo coronavírus.
“Temos visto também no continente, e não só, a forma como os jornalistas e os jornalistas ‘freelancers’ estão a perder o seu trabalho. Não por os grupos de media estarem a encerrar ou a promover cortes, mas porque simplesmente não têm onde trabalhar. A vasta maioria dos jornalistas no continente são ‘freelancers’ ou correspondentes que não integram os quadros das empresas e que podem nem estar protegidos pelas leis laborais dos seus países – quando as há”, disse a responsável.
De acordo com dados do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças da União Africana, o número de mortes provocadas pela covid-19 em África é quase dois mil, com mais de 40 mil casos da doença registados no continente.
A nível global, segundo um balanço da agência de notícias AFP, a pandemia de covid-19 já provocou cerca de 250 mil mortos e infetou cerca de 3,5 milhões de pessoas em 195 países e territórios.
A doença é transmitida por um novo coronavírus detetado no final de dezembro, em Wuhan, uma cidade do centro da China.