Cemitérios fechados, funerais com poucas pessoas, rituais reduzidos ao máximo e a dificuldade de prestar um último adeus ou de velar um familiar ou amigo são situações que geram dinâmicas e sofrimentos novos em tempos de pandemia.
Humberto Sousa é tesoureiro da União de Freguesias Fânzeres/São Pedro da Cova, em Gondomar, distrito do Porto, e responsável pelos cemitérios locais, sendo que, em 15 anos de funções, “nunca tinha visto nada assim”, conta à agência Lusa.
“Hoje [quinta-feira da semana passada] estavam dois coveiros, dois armadores e eu nas cerimónias fúnebres. Aliás, não houve cerimónia. E a família, tal é o medo de contágio pelo [novo] coronavírus, nem apareceu”, descreve.
Já no dia anterior, num funeral de uma pessoa cuja morte está associada à covid-19, estiveram no cemitério de São Pedro da Cova oito pessoas, contando já com filhos e noras da vítima.
A uma realidade completamente nova, com ausência de rituais, sejam religiosos ou não, Humberto Sousa soma novos procedimentos.
“O fardamento das pessoas que tocam na urna – que já chega desinfetada e lacrada com fita – são completamente diferentes. Estão equipados com fato de proteção descartável que no final é colocado num contentor, viseira, luvas e calçado apropriado”, enumera.
Segundo o tesoureiro, as homenagens processam-se em “minutos muito rápidos”, esteja o funeral associado a uma vítima covid-19 ou não, e a capela mortuária nem é aberta quando está comprovado que a causa da morte foi o novo coronavírus que já provocou mais de 124 mil mortos e infetou quase dois milhões de pessoas em 193 países e territórios.
“As próprias famílias não querem. O distanciamento é obrigatório. Quase não se veem abraços nem beijos”, conta.
Por trabalhar há mais de uma década nesta área, Humberto Sousa recusa-se a olhar para a morte e para o luto de forma banal, mas essa é “uma tendência infelizmente natural”, observa o presidente da Delegação Regional Norte da Ordem dos Psicólogos (OPP-DRN), Eduardo Carqueja.
“Mais do que banal, este vírus transformou toda esta dimensão em algo assustador. Em outras condições, falávamos da morte também, mas parecia algo circunscrito a determinado momento ou a determinado acontecimento ou país. Agora é algo universal que nos chega de forma muito invisível. A presença do outro ou imaginar que o outro pode transmitir a doença assusta”, refere à Lusa.
O psicólogo, que é também diretor do serviço de psicologia do Centro Hospitalar e Universitário do São João (CHUSJ), no Porto, recordou a conversa recente com um doente covid-19 impedido de ir ao funeral da mulher ou as perguntas formuladas pela filha de um homem que terá dito, em vida, que não queria ser cremado.
“Um disse-me que queria prestar um último adeus à esposa. Já da senhora que perdeu o pai ouvi: já viu que nem o último desejo dele fui capaz de cumprir? Geram-se sentimentos de impotência e revolta que constituem um enorme desafio para quem ouve e cuida. O que temos de trabalhar é a integração da perda na realidade de cada pessoa”, apontou.
As respostas a estas perguntas e desabafos “não são banais nem uniformes”, refere Eduardo Carqueja, mas podem passar por “tentar transformar as dificuldades” na ideia de que “aquela pessoa morreu como uma heroína”.
“Sabendo que sendo sepultado traria mais perigo para a saúde pública, o seu pai, numa dádiva de solidariedade se estivesse cá agora, naturalmente escolheria ser cremado”, é uma das respostas possíveis, a par de estratégias de “conforto ou sossego” como a que lhe foi relatada por uma paciente que decidiu dar aos funcionários da funerária a fotografia do pai, pedindo-lhes que confirmassem o rosto da pessoa morta dentro do caixão.
“A nossa equipa de psicólogos está a trabalhar sem sábados nem domingos porque as pessoas não escolhem sábados nem domingos para morrer. E as pessoas continuam a morrer de outras situações e isso não pode ser descurado. Todos os rituais são muito rápidos e naturalmente isso traz consequências”, analisa Eduardo Carqueja.
Uma das consequências da necessidade de encurtar rituais até aqui habituais é visível na pergunta que Ana Vasconcelos, residente em Ermesinde (Valongo), faz no Facebook da União de Freguesias de Mafamude/Vilar do Paraíso, em Vila Nova de Gaia, numa publicação na qual é divulgado que os serviços locais colocaram coroas de flores nos portões dos cemitérios.
“Tiveram essa atenção em todos os cemitérios? Gostaria muito de saber pois tenho aí sepultadas duas pessoas importantes da minha vida: meus queridos avós”, questionou Ana Vasconcelos.
A resposta afirmativa é dada na página das redes sociais e à Lusa pelo presidente da Junta local, João Paulo Correia: “Decidimos colocar coroas de flores e fazer limpezas, pois sabemos a importância que estes rituais têm para as famílias. O objetivo é dar algum conforto a quem não pode fazer a sua visita habitual à campa de um ente querido”.
Já Eduardo Carqueja acrescenta o conselho de que estes desabafos não sejam “desvalorizados” ou “desrespeitados”.
“Para muitos as campas são locais de identidade, memória e culto. Não sabendo quanto tempo o confinamento vai durar, podemos abordar o sofrimento numa dimensão transitória e aconselhar a colocação de uma vela ou de uma flor junto a uma fotografia, ou a realização de uma oração quando em causa estão pessoas mais religiosas”, conclui.
Em Portugal, segundo o último balanço da Direção-Geral da Saúde, registam-se 567 mortos e 17.448 casos de infeção confirmados pelo novo coronavírus.
Portugal encontra-se em estado de emergência desde 19 de março e até ao final do dia 17 de abril.