SAÚDE QUE SE VÊ

O MEDO DENTRO DE PORTAS

Não sei o que é viver com O medo. Nunca fui “contra uma porta” nem “caí pelas escadas abaixo”. Nunca me deitei com medo de adormecer nem acordei com uma mão agarrada ao meu pescoço.

Não sei o que é abafar as lágrimas ou esconder a dor. Fechar a porta da cozinha para apanhar de um agressor. Não sei a angústia que é ter de mentir a um filho, dizer-lhe que o barulho e os gritos eram da televisão, que “estava muito alta”.

Não conheço a vergonha das mazelas roxas no corpo. Não preciso de esconder nada. De me esconder. Eu não. Mas quantas mulheres o fazem?

Ainda não tinha pensado na violência doméstica, em tempo de isolamento, até que a realidade me entrasse pelos ouvidos. Em conversa com uma amiga, contou-me que a noite passada foi dura. Não conseguiu dormir. Acordou, de madrugada, com um pedido de ajuda. Uma mulher desesperada, algures no prédio, pedia que chamassem a polícia. Disse-me que os gritos eram aflitivos e que ouvia o choro de uma criança. E barulho. Que ligou para a polícia. Preferiu não se identificar.

Não acendeu nenhuma luz e foi até à janela. Espreitou por entre o estore e esperou. “E depois?” – perguntei-lhe. Depois refugiou-se na cama. Não sabe o que se passou. Ouviu vozes e, depois, o silêncio. Como se o pesadelo tivesse acabado. Perguntei-lhe se não tinha batido à porta da vizinha. Não. Não o fez por não saber, ao certo, de onde vinha o apelo. Não o fez por não “querer meter-se em confusões”. Porque tudo aquilo a perturbou. Não a posso julgar, não sei o que faria perante cenário igual. À medida que vou escrevendo estas linhas, percebo que, quem denuncia, também sente medo. Não será o mais nobre dos sentimentos, mas será, talvez, o que mais justifica as denúncias anónimas.

Esta conversa coincide com o dia em que a GNR revela que o número de queixas, por violência doméstica, cresceu 50% face a março, de 2019. Uma situação que, segundo a mesma, era “mais ou menos inevitável”. Mais ou menos inevitável. Por força das circunstâncias. Do confinamento. Da tensão crescente e do escape que não se tem. Do peso dos dias. Da convivência. Forçada.

O Governo já tinha previsto a escalada e anunciou a abertura de duas estruturas temporárias de acolhimento, com vagas para mais de 100 pessoas, que se juntam às 65 que já existem. Lares-abrigo quando o lar devia ser a nossa casa.

Numa altura em que estamos todos fechados, é importante pensarmos nas condições em que o fazemos. Pensarmos em quem vive ao lado, em cima ou em baixo. A ajuda que podemos oferecer, vai muito além das compras ou do desenrascar uma chávena de farinha ou um bocadinho de sal.