A diretora do Gabinete de Representação para a Europa da Agência da ONU de Assistência aos Refugiados da Palestina no Médio Oriente (UNRWA) disse hoje não encontrar explicações para Israel impedir o envio de ajuda humanitária para Gaza.
Numa entrevista à agência Lusa, à margem da 9.ª edição das Conferências do Estoril, no Campus de Carcavelos da Universidade Nova de Lisboa, Marta Lorenzo considerou que toda a situação é “uma loucura” que “está para além da compreensão”, porque “desafia as mesmas regras em que todos acreditam”.
“O direito internacional humanitário é muito, muito claro quando se trata de proporcionalidade, quando se trata de distinção de alvos militares e alvos civis, quando se trata de humanidade e evitar sofrimento desnecessário. Isso não está a acontecer em Gaza. Dois [trabalhadores humanitários] foram mortos ontem [quarta-feira]. Os nossos comboios humanitários foram atingidos. E não são apenas os comboios da UNRWA, mas os comboios da ONU”, sublinhou Lorenzo.
“Os abrigos onde hospedamos pessoas foram atingidos. E não são apenas um, dois ou três, são 200. Então não é uma coincidência que as instalações da ONU estejam a ser atingidas e eu diria por todas as partes, não apenas Israel. Mas isso significa que a bandeira da ONU não é mais capaz de proteger os civis. E isso é muito, muito sério”, lamentou.
Para a responsável da UNRWA, deve-se agora “repensar” o que significa para a comunidade internacional enfrentar uma situação em que “não há regras” e a própria comunidade internacional olha para o lado.
“As regras estão lá, mas não estão a ser aplicadas. E quando não são aplicadas, não há consequências. E não há tempo a perder. Por exemplo, se perdermos a campanha da poliomielite, a segunda ronda da campanha de vacinação contra a poliomielite, significa que o que fizemos nas últimas quatro semanas será desperdiçado”, observou Marta Lorenzo, lamentando que a terceira fase da vacinação tenha sido suspensa, na quarta-feira, devido à escalada das hostilidades e ao incumprimento das tréguas humanitárias na Faixa de Gaza, cenário de uma guerra entre Israel e o grupo islamita palestiniano Hamas desde outubro de 2023.
“A situação é insustentável e não é possível. Precisamos de forças humanitárias para poder vacinar crianças. Mas, mesmo que as vacinemos, se não houver um ambiente propício, mais tarde, ou mais cedo, elas morrem de fome ou morrem de doenças diferentes, porque a água é contaminada ou são mortas com bombas. E não podemos vacinar as pessoas contra bombas”, frisou.
Segundo Marta Lorenzo, que viajou pela primeira vez para Gaza e Cisjordânia em 1994, pouco depois dos acordos de paz de Oslo (13 de setembro de 1993) – “um período de otimismo em que se viu como tudo estava a ser construído” –, as duas regiões palestinianas estão atualmente “irreconhecíveis e inabitáveis”.
“São dois milhões de pessoas a viver em 10% do território [maioritariamente no norte], onde todos precisam de tudo e ninguém consegue distinguir o ‘status’ social. E 10% da Faixa de Gaza é um território muito, muito pequeno, é um terço da cidade de Lisboa onde se vive sem água, sem comida, ao lado de pilhas de lixo, cercadas por esgotos e sem acesso a hospitais”, relatou.
Segundo a diplomata espanhola, como trabalhadores humanitários, “é extremamente difícil fazer o trabalho”, porque a quantidade de ajuda que está a entrar na Faixa de Gaza é em média de 30/40 camiões e, mesmo quando entram, não podem entregar a ajuda.
“Não há justificação para o horror que estamos a viver. Não há justificação para manter 100 reféns em cativeiro há mais de um ano em condições horríveis e manter as suas famílias traumatizadas e toda a sociedade israelita traumatizada. Não há justificação para ter comunidades no Líbano e na parte norte de Israel deslocadas. É preciso parar. E não se pode parar atirando mais bombas. Tem de haver um cessar-fogo”, defendeu.
Questionada pela Lusa sobre se teme que o conflito entre o Hamas e Israel alastre a todo o Médio Oriente, Marta Lorenzo respondeu que tal já está a acontecer.
“O que se vê no terreno diz o oposto, a ajuda humanitária diminui, o inverno está a chegar, as pessoas já não têm resiliência, os serviços públicos entraram em colapso, a guerra no Líbano já dura semanas e o mesmo sucede na Síria, no Iraque e no Iémen. Já é uma guerra regional”, sustentou, apelando ao “bom senso” das partes em conflito.
Sobre as acusações israelitas de que a UNRWA tinha infiltrados vários agentes do Hamas, Marta Lorenzo admitiu que, após uma intensa investigação, dos 19 acusados, apenas um foi formalmente acusado e que os processos aos restantes 18, admitiu também, foram inconclusivos por não haver evidências suficientes.
“Há uma suposição de que trabalhar em áreas de conflito significa que não há risco ou que podemos mitigar todos os riscos. Isso não é possível. Haverá sempre casos em que há riscos e, no caso de Gaza, não há lei nem ordem. As pessoas estão desesperadas e quando a ajuda entra, elas roubam-na. Esse é um exemplo. Houve outros casos e nós tomamos medidas. Mas podemos generalizar o comportamento individual para problemas sistémicos da organização? Eu diria que não. A UNRWA já tem sistemas muito fortes para mitigar esse tipo de risco”, concluiu a representante.