O anteprojeto de lei de proteção em emergência de saúde pública, elaborado por uma comissão técnica criada por iniciativa do primeiro-ministro, assume o objetivo de conferir ao parlamento um “papel relevante” na resposta a uma situação dessa natureza.
“O principal eixo que estrutura o regime proposto no anteprojeto é o de assegurar à Assembleia da República um papel relevante no contexto de resposta a uma emergência de saúde pública”, refere a nota justificativa do anteprojeto de lei enviado hoje ao parlamento, aos governos regionais e às associações nacionais de municípios e de freguesias.
A nota incluída na proposta de diploma, que seguiu também para os conselhos e ordens profissionais na área da saúde, recorda que logo em março de 2020, no início da pandemia da covid-19, se gerou em Portugal um debate sobre a adequação do quadro jurídico perante uma “tão grave crise de saúde pública”, questionando-se se algumas das medidas adotadas teriam cobertura legal.
“Esse quadro de incerteza jurídica terá sido uma das razões que levou o Presidente da República a declarar o estado de emergência com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública”, refere a comissão técnica presidida pelo juiz-conselheiro jubilado António Henriques Gaspar.
Entre estas medidas constou a proibição de ajuntamentos de mais de 10 pessoas na via pública, de realização de celebrações e de outros eventos que implicassem uma aglomeração de pessoas, de circulação para fora do concelho de residência em determinados períodos, assim como as limitações à circulação durante o período noturno em municípios de risco elevado e o dever cívico de recolhimento domiciliário.
No entanto, das “poucas vezes que as medidas da situação de calamidade foram apreciadas pelos tribunais, inclusivamente pelo Supremo Tribunal Administrativo, nunca deixariam de ser validadas, tendo-se concluído que as mesmas tinham cobertura e fundamento na lei”, adianta ainda nota justificativa, lembrando que o seu objetivo era a proteção da vida humana e da saúde.
De acordo com a comissão técnica que elaborou o anteprojeto de lei, dessa discussão doutrinária e jurisprudencial importa garantir que num Estado de direito democrático, mesmo numa grave crise de emergência de saúde pública, as "medidas a adotar não deixam de ter cobertura legal, residindo, necessariamente, em uma lei parlamentar a fonte da sua legitimidade”.
O documento explica também que as disposições legais previstas têm a “adequada densidade”, uma vez que “em caso algum pode a declaração de uma emergência de saúde pública, mesmo na sua fase crítica, traduzir-se numa `carte blanche´ para o poder executivo adotar quaisquer outras medidas que na lei não estejam expressamente previstas ou, pelo menos, nela não tenham fundamento”.
“Entende esta comissão que uma lei com tais características, uma vez aprovada em sede parlamentar, confere legitimidade democrática à possibilidade de adoção de medidas que consubstanciam uma intensa restrição aos direitos e às liberdades, assim evitando-se ativar o estado de exceção constitucional, com tudo o que isso implica”, adianta ainda a nota.
De acordo com a comissão técnica, a função da Assembleia da República não se deve esgotar na aprovação de uma lei, devendo também assumir, no caso de uma emergência de saúde pública, um ativo papel durante todo o período em que for estritamente necessário a adoção de medidas restritivas dos direitos e das liberdades.
“Desde logo cabendo à própria Assembleia da República declarar a fase crítica da emergência ou, em alternativa, se se entender que a declaração inicial deve caber antes ao Governo, como é proposto neste anteprojeto, autorizar a prorrogação da sua vigência para além de um período inicial, que não deve exceder 30 dias”, refere a proposta de diploma.
“Com essa intervenção garante-se que a Assembleia da República tem uma palavra a dizer quanto à verificação (ou não) dos pressupostos materiais que, nos termos propostos no anteprojeto, habilitam o Governo a adotar aquelas medidas de resposta a uma emergência de saúde pública que mais intensamente afetam os direitos e as liberdades”, adianta.
A comissão recorda que, o longo de cerca de ano e meio, com a interrupção ditada pela declaração do estado de emergência, Portugal viveu durante meses em “situação de calamidade”, através de sucessivas prorrogações exclusivamente determinadas por resolução do Conselho de Ministros, sem a intervenção de outro órgão de soberania, “designadamente sem a possibilidade jurídica de a Assembleia da República fazer cessar ou sequer opor-se a essa prorrogação”.
“Ora, a possibilidade de prolongar indefinidamente um regime que permite ao Governo adotar medidas que consubstanciam uma intensa restrição aos direitos e às liberdades é problemática e contraria as orientações do Conselho da Europa, designadamente no que respeita à exigência de que a prorrogação da vigência de regimes de emergência esteja sujeita a uma avaliação quanto à sua necessidade por parte do parlamento”, considera ainda o anteprojeto.
Além do juiz-conselheiro jubilado António Henriques Gaspar, a comissão técnica foi constituída pelo procurador-geral-adjunto João Possante, em representação da procuradora-geral da República, Ravi Afonso Pereira, em representação da provedora de Justiça, e Alexandre Abrantes, professor catedrático da Escola Nacional de Saúde Pública.