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Vírus: Redes sociais chinesas 'fervem' com críticas diretas ao regime num fenómeno raro

LUSA
31-01-2020 11:10h

O crescente descontentamento popular pela forma como as autoridades chinesas lidaram com o novo coronavírus, que já matou 213 pessoas, é cada vez mais visível na controlada Internet chinesa, num fenómeno raro no país asiático.

"Corrupção, subornos, reguladores incompetentes e as pessoas a sofrerem", escreveu Li Sha, uma professora chinesa, na sua página na rede social Wechat. "Quantos jovens chineses hoje realmente acreditam no seu Governo?", questionou.

A observação, banal em outros países, é extremamente rara na China, onde críticas ao regime são restritas a locais privados e entre pessoas de confiança. A China condena frequentemente à prisão ativistas ou dissidentes por "perturbação da ordem pública" ou "subversão do poder do Estado".

No entanto, críticas abertas ao regime têm-se multiplicado numa altura em que o novo coronavírus está a paralisar a China, levando ao encerramento de estabelecimentos comerciais, escolas e ao aumento dos preços de bens essenciais.

A imprensa estatal chinesa tem tentado dirigir o descontentamento para as autoridades de Wuhan, de onde o novo coronavírus é originário.

Mas o presidente da câmara da cidade, Zhou Xianwang, sugeriu que a divulgação tardia do surto se deveu à crescente centralização do poder na China, numa observação também extremamente rara para um quadro do Partido Comunista (PCC).

"Espero que entendam porque é que não houve divulgação mais cedo", disse. "Após ter sido informado sobre o vírus, precisava de autorização antes de tornar a informação pública", explicou.

Inicialmente, as autoridades de Wuhan reportaram apenas 41 pacientes, e descartaram que a doença fosse transmissível entre seres humanos. Durante semanas, o número de pacientes manteve-se inalterado. Em 18 de janeiro, as autoridades de Wuhan permitiram ainda um banquete com 40.000 pessoas, com o objetivo de estabelecer um recorde mundial.

No entanto, já no final de dezembro, vários médicos da cidade começaram a alertar para os perigos de uma doença desconhecida. As autoridades agiram de imediato, não para conter o surto, mas punindo os denunciantes: a polícia deteve oito médicos para os "educar" sobre os perigos associados a espalhar rumores.

Em 20 de janeiro, dias antes de a China relatar os seus primeiros casos fora de Wuhan, já a Tailândia e o Japão tinham reportado infeções. Nas redes sociais chinesas, internautas comentaram ironicamente que o vírus era "patriótico", pois parecia só afetar estrangeiros.

Volvidos onze dias, o país asiático soma quase 10.000 infetados; companhias aéreas estão a suspender voos para e a partir da China; Rússia, Coreia do Norte e Vietname encerraram as fronteiras com o país; vários países pararam de emitir vistos para cidadãos chineses; dezenas de milhões de pessoas foram colocadas sob quarentena em Wuhan e cidades vizinhas; a Organização Mundial da Saúde decretou uma emergência internacional.

Chernobyl, a minissérie da cadeia televisiva HBO que retrata o pior acidente nuclear da história, expondo a excessiva burocracia e opacidade na antiga União Soviética, ganhou renovada audiência no país asiático.

"Wuhan e Chernobyl, o quão são parecidos! E o quão tudo isto é triste!", comentou um internauta no Douban, a versão chinesa da base dados de cinema IMDB. "Espero que o povo chinês possa aprender algo com esta série: o que nos protege não são armas nucleares, porta-aviões ou sondas lunares. O que nos protege é o fluxo livre de informação e independência judicial", observou outro.

O incidente levantou ainda questões sobre o contrato social selado entre o Partido Comunista e o povo chinês - o partido mantém autoridade indisputada e os privilégios da elite dominante e, em troca, assegura o crescimento económico, melhoria dos padrões de vida e elevação do estatuto global do país.

"O sistema atual parecia tão vibrante, mas foi completamente abalado por uma súbita crise", escreveu um internauta na rede social Weibo, o equivalente ao Twitter na China. "Renunciamos aos nossos direitos em troca de segurança", notou, "mas até onde é que a nossa apatia política nos vai levar?".

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