A suspensão do repatriamento dos mortos para o seu país de origem devido à covid-19 aflige famílias muçulmanas, confrontadas também em França com a falta de lugares dedicados ao seu culto nos cemitérios.
O patriarca Mohamed contribuiu para “a caixa de previdência para pagar o repatriamento e o funeral na vila”. Mas a sua última vontade, ser enterrado na Argélia, não poderá ser respeitada.
As autoridades argelinas recusaram o repatriamento por a família não apresentar “o certificado” de que o avô não foi infetado.
Mohamed teve um funeral com um pequeno grupo e foi enterrado num cemitério de Seine-Saint-Denis, departamento administrativo da região parisiense onde viveu mais de 50 anos.
“Marrocos e Tunísia suspenderam o repatriamento dos corpos, a Argélia tem exceções, mas não para os mortos do covid. E para os países da África subsaariana já não há tráfego aéreo”, resume o responsável pelos funerais muçulmanos Al Janaza, em Pierrefitte (Seine-Saint-Denis), citado pela agência France-Presse.
Apenas se mantêm os voos de carga para a Turquia, disse.
No último mês, tem estado “sobrecarregado com as chamadas”. “Há muitas mortes, temos de gerir as emoções das famílias, tranquilizá-las e sobretudo tentar enterrar rapidamente” como prescrito pelo rito funerário muçulmano.
Foi complicado para o pai de Rachid (nome alterado), que morreu a 04 de abril com covid-19, aos 87 anos, numa comuna do Val-de-Marne, também na região parisiense, mas sem zona muçulmana no cemitério.
Rachid teve de “batalhar” durante vários dias para encontrar um lugar numa cidade afastada.
“Passaram 15 dias entre a morte e o enterro, embora a tradição indique três dias. É desumano”, lamenta, lembrando que o sonho do seu pai era ser enterrado em Marrocos.
“Normalmente, cerca de 80% dos mortos são enterrados no seu país de origem”, indica o presidente do Conselho Francês do Culto Muçulmano (CFCM), Mohammed Moussaoui, adiantando que “a primeira geração prefere ser enterrada perto dos pais”.
Valérie Cuzol, investigadora do centro Max-Weber em Lyon (centro-leste) e autora de um trabalho sobre “os desafios do enterro” nas famílias do Magrebe, concorda: “É o desejo de fazer parte de uma filiação quebrada pela migração, que separou os irmãos”.
É uma lógica de retorno também observada em famílias italianas ou portuguesas, mas no Magrebe o regresso ‘post mortem’ é favorecido pelos Estados que nalguns casos financiam parte do repatriamento, como na Tunísia. Em Marrocos, as famílias assim contratos com bancos que se encarregam do funeral.
Com a suspensão quase total dos repatriamentos, “a crise veio revelar a falta de zonas dedicadas a muçulmanos” em cemitérios em França, considera Moussaoui, que estima o seu número em “cerca de 600”, num universo de 35.000 cemitérios.
Há mais “tensão” nas zonas “onde a população muçulmana está mais concentrada”, diz.
A Associação de Autarcas de França recorda que “não é obrigatório” um município ter uma zona confessional (muçulmana, judia, por exemplo), o cemitério deve primeiro ser neutro e secular, pelo menos nas suas partes comuns. No entanto, uma circular de 2008 incentivava os presidentes da câmara a fazê-lo.
Em Bobigny, Villetaneuse (Seine-Saint-Denis), os cemitérios municipais estão completos, segundo os municípios, que contam com os cemitérios intermunicipais.
Em Arras, no norte de França, onde a zona dedicada aos muçulmanos está saturada, o reitor de uma das três mesquitas, Mohammed Messaoudi, conta que, em colaboração com o autarca, teve de procurar solução nas localidades vizinhas para dois fiéis mortos.
A decisão de aceitar um enterro no seu cemitério é prerrogativa do presidente da câmara e “é angustiante para as famílias aguardarem por essa decisão”, assinala Moussaoui.LU